Santamaria N. Silveira*
23 de novembro de 2020 | 09h20
Santamaria Nogueira Silveira. FOTO: MARCELO SPATFORA
Nesses tempos de fake news vem à tona as palavras do dramaturgo alemão Bertold Brecht sobre a verdade: “Quem, hoje em dia, quiser combater a mentira e a ignorância e escrever a verdade tem de vencer, pelo menos, cinco obstáculos. Tem de ter coragem de escrever a verdade, muito embora por toda a parte ela seja encoberta; tem de ter a arte de a tornar manejável como uma arma; tem de ter a capacidade para ajuizar, para selecionar aqueles em cujas mãos ela será eficaz; tem de ter o engenho de a difundir entre estes”.
Nesse nosso mundo de redes sociais, a verdade já não é consensual, porque está dividida entre correntes de opiniões paralelas que, muito raramente, se encontram para dialogar ou debater, mas se concentram em promover confrontos. Temos disseminação e circulação de fake news, de meias verdades, de teorias conspiratórias, de desinformações, de radicalizações ideológicas e de discursos de ódio, que impactam a vida de todos.
Na esfera das eleições desse ano, a verdade se torna ainda mais rara e as notícias falsas imperam entre anônimos e pessoas públicas, reproduzidas incessantemente pelos aplicativos particulares, por bots (contas automatizadas) e trolls ( usuário que cria as postagens ofensivas), que conseguem impor tendências e uma agenda para nossas vidas, esvaziando um possível debate público enriquecedor.
Os conteúdos abusivos, os discursos de ódio nas redes sociais já estão naturalizados e a cada compartilhamento alimentam o incentivo à violência contra grupos vulneráveis, que cresce como um desafio para a sociedade, que não consegue encontrar um caminho para acabar com um mecanismo que vem, na verdade, violando o direito de expressão de terceiros. É o caso dos grupos de supremacistas brancos que utilizam os conceitos da diáspora e de genocídio para construir uma narrativa sobre um falso genocídio branco, que alimenta medos e ódios, como apontou a pesquisa fundamental da Profa. Dra. Adriana Dias, da Unicamp. Ela estudou as comunidades neonazistas na internet. O tão propagado “racismo reverso”, por exemplo, foi um conceito criado pela Klu Klux Klan nos Estados Unidos, considerada atualmente uma organização terrorista, mas que foi originalmente uma entidade assumidamente racista. A fórmula é sempre a mesma e serve para diferentes propósitos, como atacar mulheres, negros, LGBTI+, imigrantes etc.
Nunca as palavras de Brecht foram tão atuais, quando olhamos para os assuntos que vão para o trending topics. A verdade está mesmo encoberta por comentários feitos com endereço certo por pessoas protegidas pelo anonimato de grupos ou pelos algoritmos. Nas redes sociais, todo mundo pode virar alvo, como temos visto acontecer com mulheres negras, vítimas de xingamentos e desumanização, porque estariam “ocupando o lugar de protagonistas” que “pertencem” aos seus detratores.
Brecht é assertivo ao dizer que a verdade é uma arma que poucos sabem manejar e precisa estar nas mãos certas para abrir caminho entre as fakes news e discursos de ódio. Conseguirão o Tribunal Superior Eleitoral e a Polícia Federal vencer os cinco obstáculos para fazer a verdade prosperar? Em ações anteriores, mas insuficientes, as plataformas digitais têm tido muito trabalho para identificar e remover posts categorizados como de ódio e as fact-chekings (empresas de checagem de informação) não cansam de trabalhar para esclarecer que o software das urnas brasileiras não foi alterado por venezuelanos num complô bolivariano, entre outras inverdades compartilhadas.
Um dos personagens mais famosos de Brecht, o físico italiano Galileu Galilei, que foi processado e torturado pela igreja para abjurar de sua tese de que a terra e outros planetas giravam em torno do sol , afirma que “Que quem não sabe a verdade é simplesmente um imbecil. Mas quem sabe e diz que ela é mentira, esse então é mesmo criminoso”. A legislação brasileira, portanto, precisa se debruçar com mais eficiência sobre esse tipo de delito, coibindo seu crescimento exponencial, e fazendo com que a verdade retome a palavra nas redes sociais e na sociedade brasileira. Não podemos e não queremos negar nossa história.
*Santamaria N. Silveira é jornalista, mestre pela FFLCH-USP e doutora em Comunicação Social pela ECA-USP
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