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A união civil homoafetiva e as declarações do papa sob a luz do Direito

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Por David Igor Rehfeld
Atualização:
David Igor Rehfeld. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

No dia 21 de outubro, estreou como parte do Festival de Cinema de Roma o documentário "Francesco", dirigido por Evgeny Afineevsky. O filme traz uma inédita declaração do papa Francisco em defesa da união civil de pessoas do mesmo gênero. O documentário aborda ainda outros temas da agenda de Jorge Mario Bergoglio: da pandemia à crise ambiental, passando pelas desigualdades econômicas, os abusos sexuais, a discussão sobre gênero e relação da Igreja Católica com outras religiões.

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Logo após a estreia, trechos de uma entrevista com o papa viralizaram nas redes sociais, enfocando o seu pensamento a respeito da população homoafetiva e da sua luta por direitos. Duas declarações, em especial, chamaram a atenção da imprensa e do público: "Os homossexuais têm o direito de ter uma família, pois são filhos de Deus. Você não pode expulsar alguém de uma família" e "O que precisamos ter é uma lei de convivência civil. Dessa forma, eles são legalmente cobertos. Eu lutei por isso".

A partir de então, diversos sites e comentaristas passaram a afirmar que a declaração do papa romperia com a ideia de uma concepção única de família, unida pelo sacramento da Igreja e que passaria a tutelar uma pluralidade de arranjos de familiares, diversos e inclusivos. É preciso, entretanto, ter cuidado para não ampliar o que foi dito e distorcer a verdadeira intenção do pontífice.

As declarações contidas no documentário revelam o apoio mais evidente já feito por um Papa à união entre pessoas do mesmo gênero. Entretanto, não há que se falar em um rompimento com a ideia de família sacramental defendida pela Igreja desde a sua existência.

A primeira declaração aqui destacada deixa clara a diferença crucial entre constituir uma família e estar inserido em uma já constituída: nenhum homossexual deve ser privado da convivência com a sua família de origem. Família essa, porém, que só é reconhecida na Igreja Católica caso seja unida pelo casamento, com vínculo sacramental.

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A segunda declaração, por sua vez, deixa clara a preocupação do papa em efetivar a garantia por direitos à comunidade homoafetiva. Tais direitos, entretanto, devem se dar na esfera cível, fora do alcance da Igreja.

A busca pela garantia de direitos para famílias plurais, na esfera cível, faz parte de um processo histórico gradual de separação entre Estado e Igreja. Nesse sentido, cabe questionar o que significa na prática a dita união civil à que o Papa se refere e qual o seu alcance na tutela de direitos para a população homoafetiva. A título de exemplo, cabe observar a realidade jurídica brasileira.

No Brasil, até o advento da Constituição da República de 1889, só existia o casamento religioso. Ou seja, os não católicos não tinham acesso ao casamento e, consequentemente, não poderiam constituir família[1]. O primeiro passo para essa separação foi o reconhecimento do casamento civil, em 1891. Tal casamento, apesar de em âmbito cível, ainda submetia o casal a uma serie de formalismos e burocracias, sendo necessário um marco específico, qual seja a sua celebração, para o reconhecimento efetivo do vínculo pelo Estado.

A existência de um casamento civil, com o passar do tempo, mostrou-se insuficiente para tutelar certos arranjos sociais. Isso porque não era incomum a existência de casais que se uniam pelo vínculo de afeto com a intenção de constituir família, mas que não promoviam o casamento, seja qual for o motivo. Não importa quanto tempo tal união durasse, a esses casais não eram reconhecidos direitos sucessórios ou previdenciários,  tais como a possibilidade de ser herdeiro, a declaração de dependência um do outro para fins de benefícios da previdência social etc.

A Constituição de 1988, porém, em seu artigo 227, §3[2], observando tal defasagem, reconheceu a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, vindo tal vínculo a ser regulado, posteriormente, pela lei 9278/96 e pelo Código Civil de 2002.  Anos mais tarde, por meio do julgamento de duas ações em sede de controle concentrado de constitucionalidade[3], ampliou-se a interpretação de tal previsão, permitindo o reconhecimento de tais direitos para uniões de pessoas do mesmo gênero.

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A União Civil para homossexuais à que o papa se refere consiste em algo similar às uniões estáveis no Brasil. Trata-se de uma forma de parceria não-religiosa sancionada pelo Estado com o fito de atribuir certos direitos. O nível exato de direitos, benefícios, obrigações e responsabilidades pode variar, dependendo das leis de cada país. Nesse sentido, o chefe da Igreja Católica reconhece a possibilidade de tutela do Estado a relacionamentos extramatrimoniais.

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Sob o viés de analise da Igreja, entretanto, o reconhecimento de direitos cíveis não significa a automática correlação com a existência de uma nova modalidade familiar. Assim, é preciso que se separe a esfera de análise bem como o objeto de estudo. A depender do ramo do saber, a amplitude do conceito de família pode variar. A antropologia, a sociologia e a psicanálise, por exemplo, já haviam ampliado a conceituação de família conjugal para além daquela concebida pelo matrimônio e restrita às características da família clássica, muito antes da maioria dos ordenamentos jurídicos.[4]

A teologia católica, porém, apesar das declarações do Papa, ainda se mantém inerte à possibilidade de alterar tal concepção. Tanto é assim  que, mediante a repercussão mundial de tal pronunciamento, a Santa Sé lançou uma nota esclarecendo que as declarações do pontífice somente dizem respeito à possibilidade de uma lei civil, mas que a Igreja segue considerando as relações homossexuais como pecado e não reconhece o casamento homoafetivo, prezando pela família sacramental[5].

Será que o reconhecimento pela Igreja da possibilidade de união estável por pessoas do mesmo gênero se mostra um indício de que, em um futuro próximo, ela também reconhecerá outras modalidades de constituição de família que não sejam aquelas unidas pelo vínculo sacramental? Creio que ainda não. Qualquer mudança doutrinária significativa nesse assunto seria apresentada de uma maneira mais formal e após muito debate interno. Há, por enquanto, poucos sinais de uma mudança iminente. A declaração do papa, no entanto, parece estar inserida na ideia de que os direitos sexuais, matrizes da união homoafetiva, têm, entre os seus fundamentos, o direito implícito à busca da felicidade e a valorização do afeto. Dessa forma, o reconhecimento da União Civil já se mostra um primeiro passo. Comedido, mas de suma importância. Resta seguir na luta para que as religiões andem cada vez mais alinhadas com as conquistas sociais das minorias e se tornem um espaço de celebração do afeto e da inclusão.

*David Igor Rehfeld é advogado do escritório Pires & Kaufmann Advogados Associados

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[1] A única modalidade de família reconhecida pelo Estado nessa época era a chamada família clássica: formada pelo casamento na Igreja católica, com divisão clara de funções de gênero. Era um modelo familiar único, absoluto e totalizante, representado pelo casamento indissolúvel, no qual o marido era o

chefe da sociedade conjugal e titular principal do pátrio poder. BODIN DE MORAES, Maria Celina. A Família Democrática. Revista da Faculdade de Direito da UERJ, v. 13-14, p. 47-70, 2005.

[2] "Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...) § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento."

[3] ADPF 132/RJ, julgada em conjunto com a ADI 4.277/DF. Tal julgamento firmou a tese de que deveria ser permitido o reconhecimento de uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo no Brasil, dando nova interpretação ao art. 1.723 do CC.

[4] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Dicionário de Direito de Família e Sucessões (Ilustrado). 1a ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p.287.

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[5] Pode-se conferir o teor da nota nesse link

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