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A substituição do IGP-M pelo IPCA para além dos contratos de aluguel

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Por Laura Morganti
Atualização:
Laura Morganti. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

O agravamento da crise sanitária da covid-19 tem impactado drasticamente a economia e gerado muitas consequências também no ambiente jurídico, já que há um esforço tanto de pessoas físicas quanto de pessoas jurídicas em encontrar soluções que permitam a preservação de seus contratos e de seus status econômicos.

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No setor imobiliário, essa questão ganhou grande notabilidade, uma vez que a suspensão do funcionamento de alguns serviços e atividades, em diversos momentos desde o ano passado, acabou gerando muitos pedidos de revisão e redução de valores contratados para aluguéis.

A persistência da crise acabou impactando também os índices econômicos, com elevação substancial do IGP-M/FGV, que acumulou aumento de 31,1% no último ano. Essa alta histórica, segundo economistas, está relacionada principalmente ao preço das commodities ligadas ao setor industrial e agrícola, cotadas em dólar, e também ao aumento da demanda interna durante a pandemia.

Acontece que o IGP-M é justamente o índice mais utilizado para correção monetária dos contratos imobiliários. Assim, rapidamente, a revisão do índice utilizado no reajuste passou também a ser um ponto importante na negociação e rediscussão de contratos de aluguel. A reivindicação tem sido a sua substituição pelo IPCA, cujo aumento acumulado no mesmo período foi de 6,1%.

As implicações para o setor imobiliário têm se destacado no noticiário, mas é preciso salientar que não só contratos de aluguel estão sendo afetados pela alta do IGP-M, mas também todos aqueles atrelados a esse indicador econômico. Portanto, qualquer contratação de prestação continuada de serviços, em tese, pode ser passível dessa revisão - desde o contrato com uma empresa de segurança até o da academia de ginástica, da escola particular aos contratos com fornecedores de insumos para empresas, quaisquer que sejam seus portes.

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O cenário, já marcado por tantas dificuldades, aponta para um excesso de judicialização, o que pode ser preocupante. Além de aumentar a quantidade de processos para análise do Judiciário, existe o temor da criação de uma jurisprudência que uniformize uma decisão, por exemplo, favorável à aplicação do IPCA, e dificulte negociações no futuro.

É verdade que a tendência dos tribunais no Brasil sempre foi a de manter o princípio do pacta sunt servanda, ou seja, a ideia de que devem prevalecer os acordos firmados entre as partes. Porém, entendem também que, em situações realmente excepcionais, atendidos certos requisitos, como a ocorrência de um fator extraordinário que torne extremamente oneroso cumprimento daquele acordo por uma das partes, pode-se afastar o pacta sunt servanda para que se busque o reequilíbrio econômico do contrato.

Esse entendimento está amparado pelo artigo 478 do Código Civil, que diz que, "nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, o devedor poderá pedir a resolução do contrato".

Porém, o artigo 479 faz uma complementação, referindo que "a resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato". Aqui, cabe um parêntese para louvar a iniciativa do legislador em prestigiar que as partes busquem a autocomposição de suas demandas, para evitar, assim, sobrecarregar o Judiciário com assuntos que podem ser resolvidos em um ambiente negocial saudável e maduro.

Voltando ao tema da imprevisibilidade dos fatores que podem levar ao desequilíbrio econômico dos contratos, estamos atravessando as condições adversas e particulares que permitem a revisão das contratações. Já há diversos julgados nos quais o Judiciário vem entendendo que a pandemia é um acontecimento imprevisível que vem causando reflexos de enormes proporções na economia, afetando a vida das pessoas de forma extraordinária - desemprego, perda ou redução da renda, queda de faturamento das empresas, dentre outras consequências.

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De qualquer maneira, a parte que se sentir prejudicada deverá demonstrar que a pandemia tenha causado algum tipo de impacto negativo em suas condições financeiras a justificar a pretendida revisão contratual. É preciso provar a real necessidade econômica e que os prejuízos havidos em decorrência estritamente da pandemia geraram desequilíbrio econômico do contrato em questão.

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Vale lembrar que essa não é necessariamente uma discussão nova. No início de 1999, consumidores que tinham firmado contratos de leasing de veículos com reajuste das prestações baseado na variação cambial foram surpreendidos com a súbita desvalorização da moeda brasileira frente ao dólar. A prestação desse tipo de contrato sofreu um reajuste de aproximadamente 80%, levando consumidores e associações a recorrer ao Judiciário para sanar o problema.

Alguns juízes entenderam que a desvalorização do real não era imprevisível, pelo que não caberia qualquer alteração na cláusula que previa a alteração cambial. Outros entenderam que, diante da "onerosidade excessiva", a cláusula deveria ser revista, independentemente da imprevisibilidade ou não da desvalorização da moeda. A controvérsia chegou ao Superior Tribunal de Justiça, que pacificou a questão, ao decidir que a diferença entre a soma das prestações devidas a partir de janeiro de 1999 deveria ser dividida entre o consumidor e a empresa arrendadora.

É possível que a discussão em torno da alta do IGP-M tenha o mesmo destino. Por isso, nesse momento de tantos desafios, o melhor caminho é sempre a disposição para a negociação e a busca de um acordo que dirima prejuízos e seja justo para todos. Há muitas empresas fazendo análises de impacto econômico decorrentes da pandemia e propondo, antecipadamente e de forma proativa, a revisão de contratos e de indicadores de reajuste tanto para seus fornecedores quanto para seus tomadores de serviços.

O bom e velho diálogo - já valorizado pelo legislador infraconstitucional, como acima visto - pode evitar não só o excesso de judicialização, mas também a insolvência das empresas e de consumidores que, em meio a tantas perdas, necessitam com urgência reequilibrar seus caixas e orçamentos.

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*Laura Morganti é sócia da área de Direito Cível e Resolução de Conflitos da Innocenti Advogados

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