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A resposta e a lacuna sobre a locação via Airbnb em condomínios residenciais

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Por Caio Pires , Rodrigo da Mata e Raphael Pedro Correia da Silva
Atualização:
Caio Pires. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça pronunciou-se, de forma inédita, sobre a possibilidade de os condomínios edilícios vedarem a prática de locação das unidades autônomas através de plataformas virtuais. Neste contexto, é preciso cautela para afirmar que a Quarta Turma da referida Corte autorizou tal conduta e, consequentemente, impôs severas restrições aos usuários do AIRBNB.

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Desta forma, não por outro motivo, a interpretação mais adequada do voto-vencedor emitido pelo Ministro Raul Araújo parece ser a restritiva. Dito de modo diferente, é importante compreender que o "oferecimento via AIRBNB de acomodações em diversos quartos do imóvel - inclusive para pessoas diferentes ocuparem o mesmo cômodo - no mesmo período, aliado a prestação de serviços comuns à prática de hospedagem, porém, estranhos às locações (limpeza, lavagem de roupa) configura destinação comercial, autorizando os edifícios residenciais a vetá-la".

Conforme análise inicial, é a resposta que se deduz do acórdão. Afinal, desde o início do voto ressaltaram-se as peculiaridades do caso, as quais envolviam até a confissão da condômina sobre a intenção de transformar sua propriedade localizada no condomínio residencial em um hostel (plano, inclusive, bem-sucedido, considerando a compra de mais dois imóveis no mesmo prédio com igual finalidade). Na mesma linha, identifica-se parte das razões de decidir, vinculadas à proibição de atividade comercial em condomínios residenciais e ao impedimento do uso anormal da propriedade nas relações de vizinhança como limite objetivo ao direito de propriedade.

Portanto, restaria claro que os abusos do proprietário não se identificam com o anúncio de acomodações mediante contraprestação via plataformas virtuais, mas sim com a celebração de negócios por meio do aplicativo sob determinadas condições. Talvez, este deveria ser o resumo do comando emitido pelo STJ.

Contudo, a argumentação do Tribunal preferiu enveredar por motivos adicionais que tornariam legítimo o veto à locação via plataforma virtual dentro de condomínios residenciais. Assim, qualificou-se, como contrato de hospedagem atípico o negócio jurídico entabulado entre os anunciantes do imóvel no domínio de sites como o AIRBNB e os terceiros cujo aceite da oferta seguido do pagamento de quantia determinada permite o acesso temporário ao bem, afastando tais avenças da disciplina típica dos contratos de locação por temporada ou de hospedagem. Depois, afirmou-se uma certa perplexidade do direito frente a tais práticas, reconhecendo o voto a insuficiência das regras jurídicas hoje existentes para lidar com elas, indicando-se a necessidade de nova lei específica referente ao assunto.

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A partir deste contexto, faz-se uma essencial ressalva. De fato, não parece descabido o raciocínio daqueles que visualizam na ratio da decisão alguma tendência favorável às restrições da celebração onerosa de contratos de acomodação temporária via plataforma virtual, até que haja regulamentação legal de sua disciplina. Porém, futuras decisões ancoradas neste julgado se expõem ao sério risco de contrariar as leis esparsas de regência e a Constituição da República.

Com efeito, é preciso muito cuidado antes de permitir que a assembleia condominial adicione à convenção cláusulas proibitivas da "locação" por aplicativos quando a maioria dos condôminos entender conveniente. Da mesma forma, exige-se cautela para interpretar os estatutos condominiais segundo a máxima de que depois do pronunciamento do STJ, passa a ser regra a proibição de oferta do imóvel em plataformas virtuais, salvo para venda e locação residencial, e exceção a autorização, cuja assembleia do condomínio deve aprovar[1].

Isso porque, ao qualificar como atípico o contrato celebrado entre os usuários do AIRBNB que buscam compartilhar imóveis, o acórdão envia os demais julgadores à trilha do art. 425 do Código Civil. E do conteúdo deste dispositivo apreende-se um sentido nítido: a regra é a liberdade para contratar e estipular tipos não previstos. Apenas no caso concreto, havendo sólidos argumentos, será viável afirmar que o efeito prático-econômico de um negócio contraria os princípios, as regras e os valores do ordenamento jurídico brasileiro como um todo[2].

Nesta direção, é inevitável considerar que as plataformas virtuais garantem amplo espaço de autonomia para o anunciante ofertar seus imóveis nas mais distintas condições. Consequentemente, ele poderá aproveitar sua posse ou propriedade sobre a unidade autônoma com o objetivo de acomodar pessoas mediante contraprestação por curto período dos mais diversos modos, uns mais incômodos do que outros. Ou seja, algumas práticas são realmente nocivas à coletividade condominial, por absorverem toda a alta procura por imóveis e transformá-la em alta rotatividade dentro de um condomínio residencial. Enquanto isso, outras não são em nada distintas das locações por temporada, ainda que o julgado classifique o contrato que as contém como atípico.

Desta maneira, principalmente nos condomínios residenciais acostumados a receber turistas e pessoas em breves viagens de trabalho desde antes das plataformas virtuais, a simples oferta do imóvel na internet não parece gerar uma ameaça inesperada, concreta, à segurança, à saúde e ao sossego dos demais condôminos. Tal estado de coisas só restará operado na hipótese de aumento relevante e abrupto do trânsito de estranhos no local. Assim, haverá outorga de liberdade para o condomínio sancionar o morador da unidade autônoma, vedando a oferta do imóvel à acomodação nas condições de nítido caráter comercial, tendentes a provocar prejuízos à coletividade de moradores.

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Enquanto isso, nos demais casos deve-se preservar a liberdade contratual e as faculdades de disposição do proprietário, sob pena de tolherem-se seus direitos fundamentais individuais sem que isso seja necessário para resguardar qualquer interesse de terceiros. Afinal, não seria razoável cogitar-se nem do abuso de direito de propriedade - exercido em moldes há muito tolerados pelo condomínio, apenas celebrados os negócios de disposição temporária do espaço do imóvel por meio de plataformas virtuais- , nem tampouco de violações à função social da propriedade, no sentido de uso prejudicial aos demais moradores do condomínio.

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Pelo contrário, a vedação de oferta por meio do AIRBNB viola à legítima expectativa dos proprietários, a quem sempre foi permitida a prática de acomodação mediante contraprestação. Não só, mas também é capaz de aniquilar tanto o exercício de uma das faculdades outorgadas ao proprietário, finalizada a uma determinada utilidade - vez que a locação por temporada fora de plataforma virtual se tornou difícil e anacrônica - quanto à função social da propriedade, desrespeitada pela falta de uso do imóvel.

À vista do contexto apresentado, recomenda-se, evitar leitura simplista da decisão do STJ como uma vitória dos condomínios residenciais, cujos direitos passariam a se sobrepor aos direitos do proprietário de unidade autônoma que oferta acomodações temporárias em plataformas virtuais. Outrossim, um segundo caminho, mais cauteloso, identifica o primeiro acórdão de Tribunal Superior a respeito do tema como - a um só tempo - uma resposta e uma lacuna.

Respectivamente, a Corte logrou demonstrar que há, sim, utilizações abusivas das potencialidades de sites para o fim de anunciar a cessão temporária da unidade autônoma a terceiros, prática merecedora de censura por imprimir verdadeiro ritmo comercial ao cotidiano de condomínios residenciais. Todavia, subsistem outros casos cuja resolução enviou-se à disciplina do contrato atípico. Portanto, será essencial o intérprete preencher no caso concreto o espaço deixado pelo legislador que não regulamentou os contratos de compartilhamento no mercado imobiliário, por meio do exame dos negócios jurídicos celebrados de acordo com as normas do ordenamento jurídico brasileiro.

Dito de outra forma, a acomodação de pessoas mediante contraprestação, que se celebra por meio de plataformas virtuais como o AIRBNB, não pode ser declarada, nem pelo Poder Judiciário, nem pela assembleia condominial, sempre vedada e ilícita. Em sentido contrário, é imprescindível a cuidadosa análise da hipótese concreta a fim de verificar quais os efeitos dos contratos atípicos celebrados pelo proprietário no cotidiano dos demais condôminos.

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Com efeito, diante de certas hipóteses pode haver o mero exercício do direito fundamental de propriedade e da liberdade de contratar. Porém, frente a contingências distintas subsistirá abuso no exercício do direito de propriedade em condomínio edilício e, então, ocorrerá a não observância das normas gerais do Código Civil que, nos termos do art. 425, CC, retira o direito de as partes estipularem contratos atípicos. Mais especificamente, trata-se da utilização anormal da propriedade, perturbando o sossego, a saúde e a segurança dos vizinhos, a qual pode ser obstada pelo condomínio tanto à luz do Código Civil (art.1277, CC), quanto do art.5°, inciso XXIII, da Constituição da República (a propriedade privada em condomínio residencial deve atender à função social esperada dentro daquele espaço).

Assim, a próxima tarefa dos Tribunais dos Estados que aderirem à decisão será a de fixar parâmetros destinados a resolver a tensão jurídica enunciada pelo STJ, além daquele previsto no acórdão (suma síntese, impossibilidade de oferta de acomodação nos mesmos moldes que um hostel). Dentre eles, sugerem-se, desde agora, o impedimento da vedação completa pretendida por condomínios onde a locação por temporada sempre foi prática comum e, de outro lado, limitações do número de ofertas de acomodação que o condômino poderá fazer em determinado espaço de tempo (a título demonstrativo, três locações por mês e assim por diante). Inclusive, só a partir do adequado exercício da atividade jurisdicional, os condomínios residenciais tomarão ciência de como redigir cláusulas na convenção que regulem o compartilhamento de imóveis.

Por último, mas não menos importante, ressalte-se que o correto enfrentamento do tema perpassa reconhecer uma nova manifestação de um embate secular entre os direitos do condômino-proprietário e os interesses de terceiro, dotado de força constitucional no ordenamento jurídico brasileiro, como demonstra o art.5°, incisos XXII e XXIII, CRFB. Neste sentido, o espaço de lacuna não deve ser enxergado como ofensivo à segurança jurídica, mas sim como impulso para decisões consensuais mais harmônicas e à altura da relevância de tais direitos. Logo, soluções criativas organizadas pelas assembleias condominiais, com o objetivo de atender o condômino usuário do AIRBNB e os demais moradores, apresentam-se como estratégia alternativa, sem que o Estado-Juiz tenha que decidir em favor do interesse de um ou de outro. Ademais, poderão servir de base, também, para decisões futuras.

Sob este prisma, talvez sejam bem-vindas cláusulas de convenções que estipulem um prazo de oferta do imóvel à locação residencial, que, ultrapassado, autoriza o anúncio do imóvel para cessão onerosa temporária via AIRBNB. Ainda, mostram-se soluções interessantes as restrições de número de pessoas que o condômino poderá acomodar ao mesmo tempo, o espaço de dias entre uma locação e outra ou até uma ousada dispensa do pagamento do condomínio durante o período em que não se consegue alugar a unidade autônoma para fins residenciais.

Desta maneira, percebe-se que o debate sobre o compartilhamento de imóveis via internet está longe de acabar. Conforme analogia, a situação do jurista, das assembleias condominiais e dos condôminos ainda lembra aquela narrada por Paulinho da Viola na canção Timoneiro: quem os navega é o mar da economia compartilhada e sua tendência para gerar perplexidades. No entanto, diferente do eu lírico da música, nenhum dos grupos poderá furtar-se do seu papel de timoneiro, agarrando as rédeas do navio em que se alojam as normas do direito brasileiro para emitir respostas harmônicas a ele, pacificando conflitos decorrentes da interação inevitável da sociedade com as novas tecnologias.

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[1] Tal posição foi defendida por Rodrigo Toscano em TOSCANO, Rodrigo; PEGHINI, Cesar. Convenção de Condomínio e a proibição de "aluguel" por aplicativo. DIREITO CIVIL BRASILEIRO, 21 de abril de 2021. Disponível em: /?hl=pt-br, acesso em: 03/05/2021.

[2] OLIVA, Milena Donato; RENTERIA, Pablo. A autonomia privada e direitos reais: redimensionamento dos princípios da taxatividade e do direito brasileiro. Civilistica.com, ano 5, n° 2, 2016, p. 13-15, disponível em: https://civilistica.emnuvens.com.br/redc/article/view/267/217.

*Caio Pires, Rodrigo da Mata e Raphael Pedro Correia da Silva são advogados do Marano Advogados

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