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A recusa do arquivamento de inquérito pelo Supremo e o sistema acusatório

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Por Pedro Luís de Almeida Camargo
Atualização:
Pedro Luís de Almeida Camargo. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

A função política do Poder Judiciário nunca esteve tão evidente como nas transformações sociais ocorridas no Brasil nos últimos tempos, incluindo o processo de impeachment de um dos seus presidentes, até a revisitação de posições jurisprudenciais a partir da Lava Jato, denominação dada à maior operação envolvendo o combate à corrupção e seus desdobramentos.

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O Poder Judiciário passou, portanto, a ter um grande destaque nos temas econômicos, sociais e mesmo políticos brasileiros, o que o tornou, de maneira inédita, grande alvo da opinião pública e da imprensa, gerando ainda embates institucionais com outros poderes e órgãos estatais.

Neste contexto, merece destaque a recente decisão de rejeição do pedido de arquivamento promovido pela Procuradoria Geral da República do Inquérito n. 4781 do Supremo Tribunal Federal pelo ministro-relator do caso.

Instaurado pela presidência do STF sob o pretexto de apurar fake news cujas vítimas são os membros da própria corte, referido Inquérito tem suscitado polêmicas de várias ordens, como a legalidade da instauração do procedimento, cujo objeto é genérico, o possível alargamento da competência do STF para conduzir investigações, mesmo a censura de uma matéria jornalística e, finalmente, a decisão de rejeitar a promoção de arquivamento pelo relator, objeto do presente artigo (1).

Tal decisão gerou um embate institucional de competências com contornos políticos e institucionais entre o Ministério Público e o Poder Judiciário, merecendo, portanto, alguns esclarecimentos de ordem técnica, como forma de preservar a segurança jurídica e buscar a análise do embate sob uma ótica que não fique adstrita à mera força institucional.

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Fundada no entendimento de o inquérito ter sido instaurado fora das estritas possibilidades regimentais de instauração e condução da investigação pelo Supremo Tribunal Federal (2), de maneira a ferir o sistema acusatório e o princípio do juiz natural, bem como opinando que os fatos não estavam suficientemente delimitados e que o órgão ministerial foi alijado de seu trâmite, a Procuradoria Geral da República promoveu o arquivamento do Inquérito de n. 4781, que foi indeferido pelo ministro-relator sob o fundamento de que o Ministério Público Federal não poderia interferir no trâmite de inquérito instaurado pelo STF, uma vez que a titularidade da ação penal não se confundiria com a presidência das investigações.

Impõe-se então a seguinte pergunta: pode o Supremo Tribunal Federal recusar arquivamento promovido pela Procuradoria-Geral da República?

Para uma resposta adequada a este questionamento, três são os temas de dogmática processual penal que devem ser utilizados como base: a natureza do inquérito e da função de sua presidência; a relação entre a finalidade do inquérito e a titularidade da ação penal; e a incidência do princípio acusatório na promoção de arquivamento.

O inquérito conduzido pelo Supremo Tribunal Federal é uma investigação criminal preliminar, configurando, de maneira análoga ao inquérito policial, um procedimento administrativo destinado à prática de atos de investigação visando apurar a ocorrência de uma ação penal e sua autoria (3). Conforme os termos da própria decisão do ministro responsável pelo inquérito, o Supremo Tribunal Federal, na hipótese excepcional de presidir inquérito, atua como autoridade policial. Sendo assim, a função de presidência inclui a autonomia e o controle sobre a atividade investigativa, cabendo à autoridade a coleta de elementos informativos necessários para a apuração da infração penal investigada, podendo proceder de maneira análoga ao disposto nos arts. 6.º e seguintes do Código de Processo Penal.

No entanto, entendemos que tal autonomia na condução das diligências e atos investigatórios destinados à apuração preliminar de autoria e materialidade dos crimes investigados, não se confunde com a disponibilidade sobre o arquivamento do inquérito ou proposição de eventual denúncia. Isto porque a autoridade que preside o inquérito não possui qualquer atribuição de arquivar a investigação, nos termos do art. 17 do Código de Processo Penal, norma não contradita por qualquer disposição no regimento do Supremo Tribunal Federal.

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Tendo em vista que a finalidade do inquérito policial não se limita à mencionada apuração sobre possível fato criminoso, mas é vinculada à finalidade de "servir ao titular da ação penal condenatória" (4), a disponibilidade de arquivamento está subordinada à titularidade da ação penal. Caso tal subordinação não seja reconhecida, incorre-se no risco de existência e proliferação de investigações abusivas e injustificadas, porque não vinculadas à possibilidade de proposição futura de ação penal.

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Nesta análise, incide o chamado sistema processual penal acusatório, adotado pela Constituição Brasileira no seu art. 129, inciso I. Embora a doutrina caracterize o sistema acusatório, na dimensão dos sujeitos processuais, como sendo caracterizado pela clara separação entre as funções de acusar e julgar (5), deve se observar que há também no ordenamento brasileiro, em regra, a separação das funções de investigar e acusar.

Com efeito, tendo em vista a separação destas funções, a persecução penal no sistema adotado no Brasil se desdobra em duas partes, em que a primeira é "a da investigação, onde a polícia judiciária irá colher elementos probatórios contra o indiciado, preparando elementos para a denúncia" (6), não havendo, portanto, confusão entre a função do órgão investigador e acusador na persecução.

Assim, embora o Ministério Público conduza procedimentos investigatórios, a regra é vedar que a autoridade que preside a investigação delibere sobre a oportunidade da acusação, conforme o já mencionado art. 17 do CPP. Ademais, a incidência do sistema acusatório no instituto do arquivamento do inquérito policial importa, ainda, no reconhecimento de que a atividade judicial pré-processual se limita ao acatamento das razões de arquivamento oferecidas pelo Ministério Público, com o juiz, quando muito, podendo remeter os autos para uma reapreciação do Procurador-Geral de Justiça, nos termos do art. 28 do CPP.

No que tange ao caso suscitado no presente artigo, a despeito das outras razões utilizadas pela procuradora-geral da República para a promoção de arquivamento, é necessário verificar que um dos fundamentos do ato foi justamente o sistema acusatório, uma vez que, na sua argumentação, o Supremo Tribunal Federal teria concentrado as funções de investigador e julgador, alijando o titular da ação penal do procedimento. Tal argumento não foi refutado pela decisão do ministro, que argumentou no sentido de que estaria justificada a atribuição investigatória do STF no caso concreto em razão das disposições do regimento, bem como que o ato ministerial em questão teria confundido a autonomia na investigação com a titularidade da ação penal, sendo o arquivamento em questão uma medida de intromissão indevida na atribuição do Tribunal pela Procuradoria-Geral da República.

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No entanto, conforme visto, mesmo que se aceite a possibilidade de que o STF conduza o inquérito em questão e não se questione o conteúdo da portaria de instauração, não é possível aceitar a argumentação do ministro-relator. Tendo em vista que o Supremo assumidamente concentrou as funções de investigador e julgador no caso - o que já poderia ser tratado como inadmissível do ponto de vista constitucional - há uma dupla incidência do sistema acusatório que vedaria tal ato.

A primeira é referente à não disponibilidade da autoridade que preside a ação penal em relação ao seu arquivamento. Não há no regimento interno do STF disposição específica sobre o trâmite de arquivamento nos inquéritos instaurados por força de sua presidência e conduzidos pelos ministros da Corte, de maneira que a incidência do sistema acusatório impede que a autoridade que preside o inquérito delibere sobre o seu arquivamento, de maneira análoga ao art. 17 do CPP. Já a segunda se refere ao fato de que, uma vez promovido o arquivamento pelo Ministério Público Federal, não haveria como o STF, na posição de julgador, recusar o arquivamento, uma vez que não compete à autoridade judicial realizar esta deliberação. Embora o Código de Processo Penal preveja esta possibilidade, com a remessa para a autoridade ministerial superior, o fato de inexistir órgão do Ministério Público Federal superior à Procuradoria-Geral da República, aliado ao fato de que o Regimento Interno do STF não prevê a possibilidade de recusa de promoção de arquivamento (7), impedem que haja qualquer deliberação quanto à promoção que não a sua homologação.

Desta forma, o ministro incorreu em um erro fundamental em sua decisão. Mesmo que se aceite que o STF possa ser o investigador no caso - o que é controverso do ponto de vista constitucional - há uma confusão na decisão entre a autonomia do investigador e a finalidade da investigação. Com efeito, ao não reconhecer o inegável vínculo subordinativo entre a finalidade do inquérito e o órgão titular da ação penal, o ministro proferiu decisão que borra ainda mais as fronteiras do sistema acusatório brasileiro ao alijar o órgão ministerial da deliberação sobre a continuidade da investigação. Ademais, como o Ministério Público Federal se manifestou no sentido de entender que o inquérito é permeado por irregularidades, entende-se que nenhuma ação penal será proposta no caso, tornando a própria existência do inquérito abusiva, porque desvirtuada de sua finalidade de fornecer elementos informativos para basear ação penal.

Por fim, devem ser enfrentada duas questões secundárias relativas ao fato, que tocam nas atribuições do Ministério Público Federal. A primeira é o fato de a portaria de instauração mencionar tanto crimes de ação penal de iniciativa pública quanto de iniciativa privada, o que faria com que o Ministério Público Federal não fosse o titular da ação em relação a todos os delitos. Da mesma forma, a figura da ação penal de iniciativa privada subsidiária e sua eventual possibilidade poderia demonstrar que o Ministério Público Federal não deveria ter a disponibilidade total sobre o arquivamento. Em relação a esta questão, deve se mencionar que, apesar de o Ministério Público não possuir disponibilidade sobre o arquivamento de investigação por crime de ação penal de iniciativa privada, esta somente poderia ser instaurada mediante requerimento do titular da ação, o que não consta da portaria de instauração e não aparenta ter sido cumprido, nos termos do art. 5.º, §5.º, do Código de Processo Penal. Tendo sido o inquérito instaurado para apurar concomitantemente crimes de ação penal de inciativa pública e privada, bem como não aparentando constar o requerimento de instauração de vítima - seja esta qual for - o Ministério Público possui disponibilidade total sobre o arquivamento da investigação. Já em relação à segunda questão, deve ser vislumbrado que o direito de ação no caso de ação penal de iniciativa privada subsidiária apenas surge com a inércia do órgão ministerial no oferecimento da denúncia. Como no presente caso não houve omissão ou inércia do Ministério Público Federal, inexiste qualquer disponibilidade de eventual vítima sobre o arquivamento do inquérito.

A outra questão passível de enfrentamento é no caso de o Supremo Tribunal Federal não ser competente originariamente para julgar eventuais ações penais decorrentes da investigação e, portanto, não ser a Procuradoria-Geral da República a titular da ação penal. Neste caso, porém, por força do art. 46 da Lei Complementar 75/1993 (8), a procuradora-geral da República exerce a função de Ministério Público perante o Supremo Tribunal Federal, sendo responsável pela deliberação em relação a qualquer inquérito conduzido neste âmbito. Tendo em vista o trâmite do inquérito ter se realizado perante o STF, a única legitimada no momento procedimental tratado para deliberar sobre o arquivamento da investigação era a própria Procuradoria-Geral da República, ainda que houvesse a possibilidade futura de eventual descoberta de ação penal de competência diversa.

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A título de conclusão, podemos resumir os pontos tratados neste artigo. Primeiramente, vislumbramos que a investigação preliminar se destina à apuração de autoria e materialidade de um crime, estando a autonomia da autoridade que preside as investigações subordinada, portanto, à eventual propositura de ação penal e ao órgão acusatório.

Ademais, no presente caso, o Supremo Tribunal Federal age tanto como condutor das investigações, de maneira que não possui autonomia para deliberar sobre o seu arquivamento, quanto como julgador, que não poderia recusar a promoção de arquivamento por inexistir órgão ministerial superior à Procuradoria-Geral da República. Em ambas as posições, portanto, estaria fora da sua esfera de atribuição negar o arquivamento do inquérito, conforme a análise do sistema acusatório adotado no ordenamento brasileiro e a separação de funções entre os órgãos persecutórios e julgadores.

Por fim, verificamos que mesmo nas hipóteses de se tratarem de crimes de ação penal de iniciativa privada ou de competência diversa da do próprio Supremo Tribunal Federal no caso, não se poderia realizar o juízo feito sobre a promoção de arquivamento.

Desta forma, ancorados na análise do sistema processual penal acusatório em sua dimensão de investigação preliminar criminal e visando preservar os contornos técnico-jurídicos da análise do embate institucional, chegamos à resposta de que o Supremo Tribunal Federal não poderia rejeitar o arquivamento do inquérito promovido pela procuradora-geral da República, em qualquer hipótese.

*Pedro Luís de Almeida Camargo é advogado do setor Penal Empresarial do Siqueira Castro Advogados

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(1) "(...) CONSIDERANDO a existência de notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus calumniandi, diffamandi e injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares, RESOLVE, nos termos do art. 43 e seguintes do Regimento Interno, instaurar inquérito para apuração dos fatos e infrações correspondentes, em toda a sua dimensão." (Portaria GP n.º 69, de 14 de março de 2019 - destaques no original).

(2) Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro ministro.§1º Nos demais casos, o Presidente poderá proceder na forma deste artigo ou requisitar a instauração de inquérito à autoridade competente. (Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal).

(3) BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 6 ed., 2018, p. 126.

(4) PITOMBO, Sérgio Marcos Moraes. Arquivamento do Inquérito Policial. Sua Força e Efeito, p. 1. Disponível em: http://www.sergio.pitombo.nom.br/files/word/arq_inque_pol.doc

(5) MAIER, Julio B. Derecho Procesal Penal. I: Fundamentos. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2 ed., 2002, p. 444.

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(6) AMBOS, Kai; LIMA, Marcellus Polastri. O processo acusatório e a vedação probatória perante as realidades alemã e brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 51.

(7) Art. 21. São atribuições do Relator: (...)XV - determinar a instauração de inquérito a pedido do Procurador-Geral da República, da autoridade policial ou do ofendido, bem como o seu arquivamento, quando requerer o Procurador-Geral da República, ou quando verificar:a) a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato;b) a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade;c) que o fato narrado evidentemente não constitui crime;d) extinta a punibilidade do agente; oue) ausência de indícios mínimos de autoria ou materialidade (Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal).

(8) Art. 46. Incumbe ao procurador-geral da República exercer as funções do Ministério Público junto ao Supremo Tribunal Federal, manifestando-se previamente em todos os processos de sua competência.

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