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A realidade do cigarro ilegal -- sem ilusões

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Por Edson Vismona
Atualização:
Edson Vismona. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Já diz o ditado popular: "o pior cego é aquele que não quer ver". Felizmente as entidades de controle do tabaco passaram a enxergar o enorme problema enfrentado no Brasil com o consumo de cigarros ilícitos. Uma pesquisa recente do Instituto Nacional do Câncer, em parceria com Fiocruz, OMS e Universidade Johns Hopkins, e publicada no mais importante periódico de controle de tabaco em nível global, o Tobacco Control Journal, dimensionou o real tamanho do mercado ilegal de cigarros no país. O estudo constatou o que a indústria legal e as entidades de luta contra o contrabando - como o Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade - vêm apontando ano após ano: o consumo de cigarros ilícitos no Brasil é enorme e vem crescendo. Como confirmado pelo levantamento, em algumas cidades brasileiras o consumo de cigarros ilegais chega a 70%.

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Já não era sem tempo de o tamanho do mercado ilegal de cigarros ser reconhecido por estas entidades. Desde 2014, quando a participação do cigarro ilícito correspondia a 40% do mercado, alertamos sobre a dimensão - e crescimento - do mercado ilegal no Brasil, com base nos dados da pesquisa Ibope - a única que analisa o consumo de cigarros ilícitos por meio de entrevistas presenciais com fumantes e com recolhimento das embalagens. A pesquisa Ibope, inclusive, foi utilizada como fonte para a edição 2020 de um estudo da Oxford Economics sobre o mercado ilegal de cigarros no Brasil, por ser a que apresenta a metodologia mais acurada. Isso porque recolhe a carteira do fumante no momento da entrevista, permitindo uma identificação precisa do produto legal e ilegal, além de contar com os quatros parâmetros fundamentais para avaliação de uma metodologia de pesquisa, que são: tamanho da amostra, representatividade da população, precisão da medição, além da frequência de realização. Não é sem razão que a incidência do mercado ilegal apresentada anualmente pelo Ibope sempre foi muito maior do que os dados trabalhados pela comunidade de controle do tabaco, baseados na pesquisa Vigitel - feita somente por telefone fixo e com base nos dados da produção legal brasileira.

Foi justamente a adoção de novas metodologias que possibilitou à comunidade de controle do tabaco chegar ao entendimento do real cenário do mercado ilegal no Brasil. Dessa vez, além da pesquisa telefônica, foram feitas entrevistas domiciliares e a análise do lixo domiciliar e urbano. Os métodos apontaram índices diferentes: na pesquisa telefônica, por exemplo, a maioria dos entrevistados omite o consumo ilegal, que acabou aparecendo numa proporção bem maior quando foi analisado o lixo domiciliar e das ruas.  Os resultados expõem a origem da contradição clássica entre os dados utilizados pelo INCA e os apresentados pela indústria sobre o mercado ilegal

Cenário político do Paraguai dificulta adoção de Protocolo da OMS

Enquanto os dados do Ibope foram ignorados, o Brasil se tornou um mercado grande e atrativo para o crime organizado. De acordo com o último levantamento, realizado em 2019, seis em cada dez cigarros consumidos no país são ilegais, o que corresponde a 57% do mercado - sendo que 49% destes cigarros são produtos contrabandeados, especialmente do Paraguai. A comunidade de controle do tabaco sempre defendeu que, para combater o contrabando, bastava o Brasil implementar o Protocolo para Eliminar o Comércio Ilícito de Produtos de Tabaco e aumentar impostos. Mas, a história recente mostra que apesar de ser uma ferramenta importante para o controle do mercado ilegal de cigarros, o Protocolo tem seus efeitos limitados, uma vez que apenas a implementação no Brasil é pouco efetiva já que a maior fonte de cigarros ilícitos está do outro lado da fronteira. Ou seja, a eficácia da implementação do Protocolo não está apenas no destino, mas também na origem do contrabando. Porém, o cenário político no Paraguai não permite a adoção do Protocolo - o ex-presidente, Horácio Cartes, ainda muito influente politicamente, é dono da Tabesa, a principal indústria de tabaco no Paraguai, responsável pela produção dos cigarros com maior participação de mercado aqui no Brasil, oriundos do contrabando.

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Portanto, enquanto no Paraguai os impostos cobrados são os menores do mundo (desrespeitando as determinações da Convenção Quadro da OMS), no Brasil temos impostos alinhados com o disposto neste Tratado (18% versus 71%), logo, os preços dos cigarros do crime, que não pagam nenhum tributo, são muito baixos, propiciando uma elevada margem de lucro para os criminosos e atraindo o fumante brasileiro, especialmente os de baixa renda. Essa realidade se impõe e o novo estudo do INCA admite que o mercado ilegal pode ter contribuído para a redução da efetividade da política tributária adotada em 2011. Apesar disso, há a insistência pelo aumento da carga tributária para cigarros legais, o que contradiz os resultados do próprio estudo.

Mas a equação matemática é evidente: quanto mais aumentar o imposto, maior a vantagem do contrabando. No final de 2015 tivemos a prova dessa afirmação. O IPI subiu 140% e o ICMS 33%, em média. O volume total de cigarros em circulação no país era de 105,5 bilhões, e a participação do cigarro do crime neste mercado era de 39%, enquanto o cigarro legal respondia por 61% do mercado. Na época, o país arrecadou R$ 13,9 bilhões em impostos sobre a indústria legal e perdeu para o crime organizado cerca R$ 7,4 bilhões com a evasão fiscal. Quatro anos depois, o mercado ilegal saltou para os atuais 57%. Na prática, o reajuste nos preços de venda do cigarro refletiu na adesão do consumidor às marcas ilegais, mais baratas e que não pagam impostos.

Uma nova política tributária é o caminho 

O atual cenário do mercado ilegal mostra com clareza as consequências inversas da política tributária adotada em 2011 para o setor de cigarros. O volume total de cigarros em circulação em 2019 foi de 110,7 bilhões sendo que a menor parte, 43%, correspondeu a cigarros legais, produzidos no Brasil segundo as normas da Anvisa, gerando empregos e recolhendo impostos. Com o crescimento do mercado ilegal, pela primeira vez, a evasão fiscal superou a arrecadação: R$11,8 bilhões contra R$ 12,2 bilhões evadidos. Assim, se o alvo é a diminuição do consumo, não só dos produtos nacionais e legais, mas de todos, defender o aumento de impostos é um erro manifesto.

Importante pontuar que os impostos, além de terem efeito arrecadatório, podem ser inibidores do consumo, a chamada extrafiscalidade. Entretanto, a própria convenção quadro da OMS indica que o aumento de tributos como indutor da diminuição do consumo deve levar em consideração a incidência do mercado ilegal, pois as consequências podem ser totalmente inversas à almejada restrição do consumo. É exatamente o que está acontecendo no Brasil: enquanto diminui o consumo do legal, aumenta o do ilegal.

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A solução para o contrabando envolve oferta e demanda

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De outro lado, afirmar que o combate à oferta deve ser unicamente pela repressão, não é justo com as nossas forças policiais que, com as operações de fronteira conduzidas pelo Programa Vigia, com a Polícia Federal e Receita Federal e ações nas rodovias, coordenadas pela Polícia Rodoviária Federal e por órgãos estaduais e municipais de repressão, têm alcançado recordes de apreensão. Porém, mirar só na oferta é desconsiderar o fenômeno econômico do crime. É necessário também enfrentar a demanda, ou seja, diminuir a atração dos produtos ilegais.

Nesse sentido, qualquer aumento de impostos significa entregar de vez o mercado para o contrabando, o que interessa, e muito, às organizações criminosas. A propósito, no Grupo de Trabalho criado no âmbito do Ministério da Justiça e Segurança Pública para discutir medidas de enfrentamento ao contrabando, a manifestação da Polícia Federal foi categórica ao afirmar que a repressão policial pura e simples não tem conseguido, isoladamente, frear o contrabando de cigarros frente os incentivos legais e econômicos hoje existentes. O argumento ajudou a sustentar a continuidade do debate. E, ao contrário do que tem sido apontado por entidades que optam por ignorar a problemática do contrabando de cigarros, é correto afirmar que o relatório do GT do Ministério da Justiça não apresentou definição categórica sobre a questão. O grupo concluiu que não foram "exaustivas" as análises realizadas e destacou a necessidade de "novos estudos e discussões", pois o drama do Brasil com o contrabando de cigarros não se pode restringir unicamente ao combate da oferta, também deve ser tratada a demanda e, para isso, a questão tributária é fundamental.

Em suma, o crescimento do contrabando de cigarros, financiando as organizações criminosas e milícias, é algo que afeta toda a sociedade. Mistificar esse tema, não avaliando todos os aspectos que envolvem essa complexa questão, é ilusão - o que, decididamente, não auxilia em nada o avanço de qualquer política de segurança pública de combate ao crime organizado e à evasão fiscal.

*Edson Vismona, advogado, presidente do Fórum Nacional Contra a Pirataria e Ilegalidade (FNCP), foi secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo (2000/2002)

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