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A realidade das audiências de custódia

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Por Marcos Faleiros da Silva
Atualização:

 Foto: ALEX SILVA/ESTADÃO

Em 2015, o Supremo Tribunal Federal determinou aos juízes e tribunais brasileiros que, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, realizassem audiências de custódia, viabilizando o comparecimento da pessoa privada de liberdade perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contados do momento da prisão, diante da precária situação carcerária brasileira, com excesso de encarceramento sem o esperado resultado na diminuição da criminalidade.

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De acordo com a Corte Suprema Brasileira o "presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caracterizado como 'estado de coisas inconstitucional" (1).

Em verdade, conforme dados do Departamento Penitenciário Nacional, em 2019 a população prisional brasileira atingiu a impressionante marca de 758.676 (2) presos, colocando no Brasil o triste predicado de um dos países que mais prendem no mundo, não só em números absolutos, como também proporcionalmente pela quantidade de encarcerados a cada 100 mil habitantes.

Em números absolutos, o Brasil já atingiu a posição de 3º lugar do mundo de reclusos. Considerando a taxa de aprisionamento por 100 mil habitantes, o Brasil ocupa a 20ª posição mundial, conforme dados da Word Prision Brief (3). Importante ressaltar que em 1990 (4) o Brasil abrigava em torno de 90.000 pessoas privadas de liberdade, portanto a população prisional brasileira sofreu um absurdo aumento de 840% em pouco mais de 29 anos.

Apesar do superlativo aumento das pessoas privadas de liberdade, não houve uma diminuição da criminalidade e, ainda, gerou como consequência a proliferação dentro das penitenciárias das facções criminosas, ou gangues, que se aproveitaram do caos prisional e passaram a usar os locais de privação de liberdade como quartel general e suporte de recrutamento. Cito, a exemplo, o PCC - Primeiro Comando da Capital - que se tornou rapidamente uma das maiores organizações criminosas da América do Sul, conforme matérias jornalísticas do El País (5).

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Nesse contexto, atendendo ao chamado do ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski, acompanhando o movimento nacional de desencarceramento, realizamos a primeira audiência de custódia na cidade de Cuiabá, Estado de Mato Grosso, no dia 24 de julho de 2015.

Até 31/12/2019, 15.044 presos foram apresentados a um Juiz Criminal de Cuiabá, com 58% de soltura imediata, 12,5% de notificação de casos de tortura e 4.276 encaminhamentos assistenciais - diga-se tratamento de drogas, emprego, estudo, etc (6).

Detectamos que houve um relevante avanço civilizatório e um natural nivelamento do ordenamento jurídico brasileiro aos Tratados Internacionais, como também, após mais de quinze mil audiências de custódia realizadas em Cuiabá, detectamos empiricamente várias situações, dentre elas cito:

a) O contado direto e imediato do Juiz com a pessoa presa aumentou o nível de cientificidade da autoridade judiciária para decidir a partir do material oral apresentado, é dizer, vendo a situação do preso em flagrante e o inquirindo, na presença de seus familiares, após análise da equipe multidisciplinar - psicólogo, assistente social, médico, etc., e contando com a presença do defensor/advogado e do promotor, os Juízes Criminais passaram a dispor de mais elementos de convicção para aplicar uma medida cautelar diversa da prisão adequada ao caso, como também esclarecer dúvidas e chegar a uma decisão mais justa e acertada.

b) Houve um incremento e maior tutela na proteção da integridade física e psíquica da pessoa presa, porque a oitiva qualificada da pessoa custodiada imediatamente após o flagrante, com perguntas sobre as circunstancias da prisão, fornece ao Juiz elementos para perceber e materializar indícios quanto à ocorrência de tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, bem como efetivar as providências em caso de apuração de indícios de tortura nos termos do Protocolo II da Resolução 213/CNJ e Protocolo de Istambul, porque não se pode esconder as marcas da tortura dos olhos atentos de um Juiz imparcial e garantidor da Constituição e Tratados;

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c) A identificação por parte da autoridade judicial de outras sérias violações a direitos fundamentais (uso indevido de algemas e marca-passos (7), recolhimento em quartel militar de presos civis, presos de gênero diverso ou adolescentes com maiores de idade presos na mesma cela, recolhimento em viaturas ou contêineres, etc).

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d) A interrupção das carreiras criminosas e diminuição do desvio secundário (outsiders), na medida em que 58% dos presos em flagrante não ingressaram um dia sequer em penitenciária ou cadeia - com soltura imediata, logo 8.726 (8) pessoas ficaram livres dos efeitos deletérios sociais e psicológicos da estigmatização e do recrutamento pelas facções criminosas.

Com fundamento na experiência e nos números oficiais comprova-se o sucesso do projeto audiência de custódia no Brasil e, em particular, Cuiabá. Os baixos índices de reingresso (somente 16% dos presos em flagrante retornaram ao sistema) (9) e, em revelação contrária ao senso comum, comprovou-se que a preservação dos direitos humanos e respeito aos tratados internacionais são valores compatíveis e conciliáveis com a segurança pública.

Felizmente, não existe ou não se aplica o famoso paradoxo entre a liberdade e segurança defendido por Zygmunt Bauman (10), no que diz respeito às audiências de custódia em relação à segurança pública, porque a partir da implantação das audiências de custódia houve uma maior proteção às liberdades individuais, especial prevenção à tortura e proteção da dignidade humana e, ao mesmo tempo, a sociedade experimentou uma importante diminuição dos índices de criminalidade.

A viabilidade e compatibilidade da rede de proteção de direitos humanos, em especial a custódia, com o sistema de segurança pública, estão embasadas no fato de que após a implantação das custódias não houve aumento da criminalidade, muito pelo contrário, ocorreu minoração dos índices dos principais delitos em Cuiabá e no Brasil.

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Tomemos a exemplo os crimes de morte violenta intencional e roubo de veículos, os quais incomodam sobremaneira a sociedade, oportunidade em que a questão fica bastante elucidativa.

As audiências de custódia iniciaram-se em Cuiabá em 2015 e, até 2019, foram 15.044 presos apresentados a um Juiz de Direito. Conforme pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, publicada em seus Anuários, em 2014 a cidade de Cuiabá tinha a taxa de 45,5 crimes com mortes violentas intencionais por 100 mil habitantes, compreendidos homicídios, latrocínios e lesões seguidas de morte.

A partir de 2015, ano da implantação do projeto de custódia, os números começaram a baixar, chegando em 2018 a um patamar menor de 20,6 mortes por 100 mil habitantes, com uma diminuição de 54,5% conforme abaixo (11):

Mortes Violentas Intencionais em Cuiabá:

2014 (45,5), 2015 (43,8), 2016 (37,2), 2017 (25,9) e 2018 (20,6).

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Com relação aos crimes de morte violenta, os dados do IPEA estão no mesmo sentido, ou seja, uma diminuição dos números pela metade após a implantação do projeto audiência de custódia (12).

Após a implementação das audiências de custódia em Cuiabá também visualizamos um declínio importante nos crimes de roubo e furto de veículos num patamar considerável de aproximadamente 35,4%, observando os dados abaixo nos Anuários do Fórum Brasileiro de Segurança Pública:

Roubo e Furto de veículo em Cuiabá:

2014 (719,1), 2015 (682,1), 2016 (661), 2017 (527,3) e 2018 (464,5).

 

Evidenciamos também nos relatórios oficiais do TJMT que as prisões em flagrante também diminuíram na cidade de Cuiabá após o ano da implantação do projeto de audiências de custódia, impactando no número audiências de custódia realizadas. A média/mês de audiências de custódia realizadas em Cuiabá diminuiu 20,4%, de acordo com os dados abaixo citados:

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Média por mês de Audiências de Custódia realizadas na cidade de Cuiabá

2014 (-), 2015 (-), 2016 (335), 2017 (313), 2018 (283) e 2019 (266).

 

Como visto, o impacto das audiências de custódia na segurança pública foi extremamente positivo. A conclusão é que a realização das audiências de custódia é compatível e conciliável com a segurança pública e, relevante ressaltar, que existe uma tendência de que as audiências de custódia possam contribuir com a redução da taxa de criminalidade, necessitando maiores pesquisas a respeito.

Apesar dos avanços, órgãos nacionais, tais como CNJ - Conselho Nacional de Justiça, Departamento Penitenciário Nacional e Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), e entidades internacionais, a exemplo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, APT e World Prison Brief (WPB), têm detectado um excesso de encarceramento no Brasil e, ainda, aumento na aplicação do instituto da prisão preventiva, que em Cuiabá, 56% da população carcerária são presos provisórios.

Após análise da sistemática brasileira ao longo dos anos, conclui-se que mais prisões provisórias, mais intolerância, mais policiais, mais juízes, mais penas, têm apenas um resultado: mais presos, não necessariamente há uma diminuição da criminalidade, porque delitos têm inúmeras causas e uma gama enorme de controle, e o excesso de prisões pode ocasionar apenas mais carreiras criminosas, gerando mais crimes, efeito contrário daquilo que possa se esperar, como preconiza os teóricos da Labelling Approach, quando explicam que o exagero da prisão cumpre uma função reprodutora de crimes (13), nos seguintes termos: delinquência primária - resposta repressiva estatal em excesso - carreira criminal - delinquência secundária.

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Importante considerar que muito se tem a construir na mudança de paradigma dos operadores do direito, em especial dos magistrados criminais, porque a não utilização das medidas cautelares desencarceradoras e restaurativas, bem como a mentalidade punitivista ainda vigoram, mesmo com as audiências de custódia e as alternativas penais terem sido inseridas na legislação interna do Brasil.

Temos que o magistrado criminal deve ser sensível como um médico, com uma vida fadigosa dedicada inteiramente aos vulneráveis e miseráveis. O médico e o juiz criminal devem empregar os melhores meios e processos para diagnosticar o problema e aplicar o melhor tratamento ao caso. Um como o outro devem utilizar-se de mecanismos para curar a pessoa enferma e tratar a sociedade e os vulneráveis da melhor forma. Da mesma maneira que um médico não pode tratar todas as enfermidades apenas e tão somente com um tipo de comprimido, ao Juiz não é dado salvaguardar a sociedade apenas prendendo pessoas, para agradar a opinião pública, a qual vê na prisão a panaceia de todos os males. Só assim os doentes serão tratados com cuidado e as pessoas em conflito com a lei julgadas com justiça.

Artigo publicado pela Associação para a Prevenção da Tortura (APT - Association for the Prevention of Torture), com sede em Genebra (Suíça), nesta quinta-feira, 16

*Marcos Faleiros da Silva, juiz de Direito e coordenador do Núcleo de Audiências de Custódia do Fórum de Cuiabá/MT

(1) BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma - ADPF 347

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(2) https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiMTVjZDQyODUtN2FjMi00ZjFkLTlhZmItNzQ4YzYwNGMxZjQ zIiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9, visualizado em 2/3/2020.

(3) https://www.prisonstudies.org/highest-tolowest/prison_population_rate?field_region_taxonomy_tid=All visualizado em 02/03/2020

(4) http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorios-sinteticos/infopen-jun-2017-rev12072019-0721.pdf, visualizado em 2/3/2020.

(5) https://brasil.elpais.com/brasil/2020-01-19/fuga-em-massa-de-presos-do-pcc-noparaguai-coloca-autoridades-em-alerta.html, visualizado em 30/1/2020.

(6) Dados oficiais TJMT.

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(7) Algemas nos tornozelos.

(8) BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso. Dados oficiais.

(9) BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso. Dados oficiais.

(10) BAUMAN. Zygmunt. O Retorno do Pêndulo. 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2017, p. 16/17.

(11) Anuário Brasileiro de Segurança Pública, anos 2015-2019.

(12) http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/filtros-series/1/homicidios, visualizado em 03/2/2020.

(13) CALHAU, Lélio Braga. Resumo de Criminologia. 8ª ed. Niterói, RJ: Impetus. 2013. p. 76.

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