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A preocupação dos contribuintes com o sigilo de informações divulgadas ao Fisco numa transação

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Por Andréa Mascitto e Marco Aurelio Louzinha Betoni
Atualização:

Andréa Mascitto e Marco Aurelio Louzinha Betoni. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Após mais de 50 anos dormente no Código Tributário Nacional, a transação tributária foi finalmente regulamentada este ano e passou a ser uma alternativa para os contribuintes regularizarem sua situação fiscal.

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Criada há apenas quatro meses, os números da transação tributária já chamam atenção: foram mais de 30 mil transações que envolvem mais de R$ 9 bilhões.

Ainda que a transação em matéria tributária pareça-nos a grande inovação da Lei 13.988/2020, a maior novidade trazida por essa lei é a nova relação entre Fisco e contribuinte, que finalmente poderão sentar-se à mesa para negociar e transacionar dívidas tributárias (dívidas em si e não apenas aspectos processuais), como já acontece em diversos países.

O que se espera da Lei 13.988/2020 é que tenha ficado para trás a sensação de que a Receita Federal e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) estejam do lado oposto ao dos contribuintes. O espírito de cooperação, transparência e razoabilidade deverá ditar o tom da nova relação, que tem de tudo para trazer benefícios para as duas partes.

Para a realização da transação, o contribuinte, em muitas situações, abre ao Fisco informações sigilosas do seu negócio, como por exemplo faturamento, custos com folha de pagamento, aquisição de insumos, aluguel de imóveis, margem de lucro, ativos e respectivos rendimentos, entre outros, com a finalidade de demonstrar de forma transparente a sua situação financeira e, com isso, chegar a um acordo sobre as condições que viabilizem o pagamento de suas dívidas tributárias. A análise é, portanto, casuística.

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Contudo, um silêncio na norma provoca receio, do lado dos contribuintes, em relação a como e em que circunstâncias as informações sigilosas divulgadas ao Fisco pelos contribuintes poderão ser utilizadas.

A Lei 13.988/2020 estabelece em seu artigo 1º, parágrafo 3º, que a transação em matéria tributária deverá observar o princípio da transparência, sendo que todos os termos de transação celebrados deverão ser divulgados em meio eletrônico "com informações que viabilizem o atendimento do princípio da isonomia, resguardadas as legalmente protegidas por sigilo". Portanto, esse dispositivo protege a divulgação pública das informações sigilosas divulgadas; porém, nada fala sobre os limites do uso dessa informação pelo Fisco.

Ou seja, apesar de estarem protegidas por lei para fins de divulgação pelo Fisco, essas informações estarão à disposição da Receita Federal ou da PGFN e poderão, na prática, ser utilizadas em contextos diferentes.

Exemplo disso é a situação hipotética do contribuinte que possui valores a receber de clientes, mas pretende utilizar tais recursos para a modernização do seu negócio ou para outros investimentos que poderão contribuir para a geração de receita. A abertura de informação como essa, disponível na contabilidade da empresa, poderia ser utilizada pelo Fisco Federal para que, por exemplo, seja feita penhora online na conta corrente do contribuinte no momento do depósito dos recursos?

Outra situação que ilustra esse racional é o caso do contribuinte que, além de dívidas tributárias, possui outras dívidas com prioridade de negociação, o que garantiria a continuidade da operação da empresa, como por exemplo dívidas trabalhistas, com bancos, fornecedores, etc. O fato de o Fisco ter conhecimento da existência de recursos para o pagamento dessas outras dívidas poderia, eventualmente, criar o argumento de que o contribuinte possui recursos para oferecer como garantia em execução fiscal um depósito judicial ao invés de um bem imóvel?

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É certo que tanto a Procuradoria como a Receita Federal são órgãos compartimentados, com competências específicas atribuídas a cada divisão e servidores distintos; porém, nada veda o compartilhamento dessas informações, a exemplo inclusive do que há entre Fiscos, o que é disciplinado pela Portaria Conjunta PGFN/RFB n.º 1/2014 e pelo Parecer PGFN nº 980/2004.

Ou seja, a lacuna legislativa cria uma insegurança que pode desencorajar muitos contribuintes de fazer uso da transação.

Sobre o assunto, é importante analisar o exemplo de outros países que já utilizam o instituto da transação tributária ou até da arbitragem tributária há alguns anos e podem servir de inspiração e experiência para o modelo brasileiro.

A legislação americana possui previsão legal expressa que veda a utilização das informações prestadas ao Fisco.

"a)General rule Returns and return information shall be confidential, and except as authorized by this title --

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(1) no officer or employee of the United States,

(2) no officer or employee of any State, any local law enforcement agency receiving information under subsection (i)(1)(C) or (7)(A), any local child support enforcement agency, or any local agency administering a program listed in subsection (l)(7)(D) who has or had access to returns or return information under this section or section 6104(c), and

(3) no other person (or officer or employee thereof) who has or had access to returns or return information under subsection (c), subsection (e)(1)(D)(iii), paragraph (10), (13), or (14) of subsection (k), paragraph (6), (10), (12), (13)(A), (13)(B), (13)(C), (13)(D)(i), (16), (19), (20), or (21) of subsection (l), paragraph (2) or (4)(B) of subsection (m), or subsection (n),

-- shall disclose any return or return information obtained by him in any manner in connection with his service as such an officer or an employee or otherwise or under the provisions of this section. For purposes of this subsection, the term "officer or employee" includes a former officer or employee."

Além disso, a Internal Revenue Service (IRS), órgão que corresponde à Receita Federal nos Estados Unidos, possui mecanismos que garantem o sigilo das informações que são disponibilizadas pelos contribuintes ao Fisco.

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Exemplo disso é o "Taxpayer bill of rights" (https://www.irs.gov/newsroom/taxpayer-bill-of-rights-8-the-right-to-confidentiality-0), seguido pela IRS, que prevê como direito fundamental do contribuinte o direito ao sigilo de informações divulgadas ao Fisco. De acordo com essa regra, é garantido o sigilo das informações passadas ao Fisco, sendo possível eventual divulgação apenas se houver autorização expressa do contribuinte. Nesse caso, o sigilo veda a divulgação de informações para terceiros e até mesmo dentro da própria IRS.

Por sua vez, no Brasil, o sigilo das informações levadas ao conhecimento do Fisco, pelos contribuintes, leva em conta apenas a divulgação pública dessas informações, nos termos do que dispõe o artigo 1º, parágrafo 3º, da Lei 13.988/2020, não existindo qualquer previsão sobre a divulgação de informações dentro do próprio Fisco.

Seguindo essa mesma linha de raciocínio, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) desenvolveu um guia sobre como manter as informações disponibilizadas pelos contribuintes ao Fisco em sigilo (veja abaixo).

Documento

GUIA

Esse documento demonstra que países como a Dinamarca e a Eslovênia exigem que os integrantes das suas respectivas administrações tributárias (os servidores envolvidos no caso) assinem termos de confidencialidade no momento em que são contratados, justamente com o objetivo de evitar a divulgação de informações sigilosas.

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A Itália, por outro lado, criou um serviço interno de auditoria, dentro da própria estrutura da administração tributária em âmbito nacional e local, para monitorar a aplicação de regras relacionadas à proteção das informações divulgadas pelos contribuintes ao Fisco.

Com a finalidade de evitar o mau uso de informações sigilosas pela própria estrutura do órgão de fiscalização de tributos, a Alemanha exige que o Fisco armazene informações sigilosas de contribuintes em sistemas que só podem ser acessados por servidores que possuam autorização expressa para ter acesso àquelas informações. Com isso, evita-se que outros integrantes do próprio Fisco utilizem aquelas informações para outros fins, que não aqueles que motivaram o contribuinte a disponibilizar as informações.

A postura adotada pelo Fisco alemão é semelhante ao que é denominado, no mundo corporativo, "chinese wall", que pode ser definida como uma barreira física entre departamentos de uma mesma empresa que busca evitar a troca indevida de informações confidenciais e o conflito de interesses. Soluções simples, já existentes nos dias de hoje no ambiente das empresas, também podem ter excelentes resultados quando utilizadas no setor público.

Exemplos como esses demonstram, a nosso ver, que seria importante que o início das tratativas de um acordo de transação incluísse a obrigatoriedade de assinatura de um termo de confidencialidade que garanta que as informações prestadas pelos contribuintes serão utilizadas única e exclusivamente para aquele fim, sob pena de multa ou penalidade similar que proteja o sigilo da informação, inclusive dentro da própria Receita Federal ou da PGFN.

Além disso, entendemos que seja recomendável a criação de um órgão pela Receita Federal e também pela PGFN que tenha como finalidade a auditoria interna de toda a instituição como forma de garantir o bom uso das informações apresentadas pelos contribuintes ao Fisco, o que certamente contribuirá para a transparência e para o espírito de cooperação que deverá guiar a relação Fisco-Contribuinte a partir da edição da Lei 13.988/2020.

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Por fim, o armazenamento de informações sigilosas em bancos de dados que não estejam disponíveis a toda a estrutura do Fisco também nos parece uma boa medida para resguardar o sigilo de dados repassados por contribuintes no contexto de transações tributárias, mais uma vez reforçando a segurança do contribuinte ao dividir informações sigilosas com a Receita Federal ou com a PGFN.

Como conclusão do exposto, e como os números já mostram, a Lei 13.988/2020 com ulterior regulamentação tem um importante potencial de instituir um novo marco na relação Fisco-Contribuinte, com benefícios de parte a parte. Para que essa nova relação já nasça forte e transparente, entendemos que o Fisco deverá tomar o devido cuidado na administração de informações sigilosas que serão disponibilizadas pelos contribuintes, o que poderá ser feito mediante a criação de mecanismos que assegurem a sua utilização única e exclusivamente para os devidos fins para que foram disponibilizados.

*Andréa Mascitto é sócia da área tributária do escritório Pinheiro Neto Advogados e co-coordenadora do grupo de estudos do mestrado profissional da Escola de Direito da FGV São Paulo dedicado ao estudo de métodos alternativos de solução de controvérsias em matéria tributária

*Marco Aurelio Louzinha Betoni é associado da área tributária do escritório Pinheiro Neto Advogados e cofundador do Grupo de Estudos de Política Tributária (GEPT)

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