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A Portaria 625/2021 como instrumento de discriminação contra a população venezuelana

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Por Guilherme Roberto Guerra
Atualização:
Guilherme Roberto Guerra. FOTO: ARQUIVO PESSOAL  

A Venezuela vive a maior crise migratória de sua história. Dados disponibilizados pela Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) demonstram que cerca de cinco milhões de pessoas já saíram do país em busca de refúgio, transformando-o no segundo maior polo de migração, atrás apenas da Síria. Como a Venezuela divide fronteira apenas com Brasil, Colômbia e Guiana, a crise reflete diretamente em nosso país. Amazonas e Roraima, as fronteiras terrestres brasileiras, são utilizadas como rota de fuga por venezuelanos. Não à toa, cerca de 90% dos 43 mil estrangeiros que vivem no Brasil na condição de refugiados são oriundos da Venezuela, conforme dados divulgados pelo Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE).

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O órgão reconhece que a Venezuela "apresenta grave diagnóstico institucional com múltiplas violações dos direitos humanos" (Nota Técnica nº 3/2019). Logo, os venezuelanos que buscam abrigo em solo brasileiro se enquadram na condição de refugiado -- estabelecida pela legislação brasileira a pessoas que que deixam seu país "em virtude de grave e generalizada violação de direitos humanos". Diante deste contexto, o acolhimento aos venezuelanos refugiados é obrigação legalmente imposta.

Essa recepção pelo Brasil de estrangeiros na condição de refugiados é política pública histórica e disciplinada legalmente pelo Estatuto dos Refugiados, promulgado no ano de 1997 sob o Espírito da Convenção de Cartagena. Todavia, de forma contrária à legislação, que possui respaldo na Constituição Federal e nos compromissos assumidos perante a comunidade internacional, o Governo Federal editou a Portaria 255/2020, cujas restrições foram reforçadas na vigente 625/2021. Os regulamentos estabelecem a proibição do pedido de refúgio àquele que adentrar no país pela via aquaviária ou terrestre, principal rota dos venezuelanos.

Essas Portarias violam diretamente o Estatuto dos Refugiados, o qual estabelece que "o ingresso irregular no território nacional não constitui impedimento para o estrangeiro solicitar refúgio às autoridades competentes". Além disso, elas servem como ferramentas para o Governo Federal discriminar e negar direitos aos venezuelanos.

O caráter discriminatório direcionado aos venezuelanos é evidente. Principal via terrestre de ingresso no Brasil, Roraima tem cerca de 11,2 mil refugiados que vivem divididos entre 13 abrigos oficiais, ocupações espontâneas e até mesmo em situação de rua, conforme dados disponibilizados pela ACNUR e pela Plataforma R4V. Como a população originária da Venezuela representa 90% dos refugiados no Brasil, por consequência lógica, ela é a maior afetada pela inabilitação do pedido de refúgio.

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A motivação para que apenas o fluxo aéreo continue permitido pela Portaria 625/2021 não foi exposta no texto do ato, o que revela notória violação ao princípio da isonomia, inclusive socioeconômica.

Neste ponto, é oportuno salientar que o ato motivou essas restrições mediante a afirmação que se trata de recomendação "técnica e fundamentada" da ANVISA para conter a disseminação do novo coronavírus. Porém, o órgão regulamentador, em nota oficial à Folha de São Paulo, afirmou o contrário: "as restrições a estrangeiros provenientes da República Bolivariana da Venezuela não constam em nenhum dos documentos apresentados pela Anvisa para subsidiar a tomada de decisão do referido Comitê".

Não fosse suficiente, a justificativa adotada nas Portarias foi refutada pessoalmente pelo Presidente da República na petição inicial que deflagrou a ADI 6.764. Nesta petição, que assinou de próprio punho, Jair Bolsonaro afirmou expressamente que "a completa interdição da circulação de pessoas parece traduzir, em si mesma, uma medida excessivamente onerosa".

Não havendo base legal que sustente as Portarias, nem justificativa idônea para restrição do ingresso no país apenas pelas vias terrestre e aquaviária (não pela via aérea), ou ao menos parecer técnico da ANVISA que justificasse a limitação estabelecida nas Portarias, bem como havendo manifestação oficial do Chefe do Poder Executivo Federal contrária à restrição da circulação de pessoas, não se vislumbra qualquer outra razão de existência daqueles atos regulamentares, particularmente no que toca a vedação do pedido de refúgio, senão a utilização deles para negar direitos garantidos a venezuelanos que buscam abrigo no país.

Trata-se, portanto, de ato de extrema gravidade e com irremediáveis reflexos humanitários. Parte dessas consequências já foram, inclusive, constatadas pela ONG Visão Mundial, que realizou estudos com crianças e adolescentes venezuelanos que residem no Brasil e em outros cinco países da América do Sul. O estudo demonstrou que 80% dessas crianças ou adolescentes teve a renda e acesso a alimentação piorada na pandemia, em 60% dos casos algum familiar teve que sair de casa para trabalhar e se submeter ao risco de contágio, mais de 60% pararam os estudos, 34% não tiveram acesso à saúde e 20% deles nem sequer a água e sabão, bem como cerca de 75% dos que residem no Brasil vivem em ocupações informais que facilitam o contágio.

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O Brasil apresenta reconhecido histórico diplomático acerca de questões humanitárias, sendo inclusive, um dos signatários originais da Declaração Universal de Direitos Humanos em 1948. Esse documento dispositivo internacional assegura a existência digna aos seres humanos, mediante a garantia de condições mínimas de saúde e bem-estar, principalmente quanto à alimentação, alojamento e assistência médica. Ao agir sem qualquer embasamento técnico ou fático para contribuir com o agravamento da crise humanitária sofrida pelos venezuelanos, o Governo brasileiro comete "múltiplas violações dos direitos humanos", as mesmas que, ironicamente, apontou existirem no país vizinho.

*Guilherme Roberto Guerra, graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, analista jurídico na 96.ª Procuradoria Criminal do Ministério Público do Estado de São Paulo

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