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A porta da impunidade (ou do descontrole) no Tribunal do Júri

Por Tereza Cristina Maldonado Katurchi Exner , Jorge Assaf Maluly , Martha de Toledo Machado , Motauri Ciocchetti de Souza e Pedro Henrique Demercian
Atualização:
Sede do Ministério Público de São Paulo. FOTO: DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO  

O Supremo Tribunal Federal recentemente noticiou que, por maioria de votos, a Primeira Turma decidiu contra lei expressa, aparentemente acolhendo inconstitucionalidade do artigo 593, III, "d", do Código de Processo Penal, que permite anulação do veredicto do júri popular, quando a decisão for manifestamente contrária à prova dos autos. O preceito expresso de lei está em vigor há 70 anos e sua constitucionalidade estava consolidada há muito tempo no próprio Supremo Tribunal Federal, por decisões de ambas as turmas, prolatadas depois da vigência da Constituição de 88 e da reforma processual de 2008.Não alcançamos a razão da mudança da orientação consolidada; menos ainda, por órgão fracionário e por maioria de votos. Sempre com o elevado respeito que devotamos a, e de que são merecedores, todos os eminentes Ministros do augusto Supremo Tribunal Federal.

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No debate do tema, é importante destacar que a decisão absolutória arbitrária do júri só pode ser revista uma vez, pelos Tribunais compostos por magistrados. Se for reafirmada pelo novo júri, ao segundo julgamento, prevalecerá a absolvição (art. 593, § 3º, do Código de Processo Penal). Ao anular o veredicto do júri popular por manifesta contrariedade à prova, o Tribunal técnico apenas sinaliza ao novo júri que a decisão anterior contrariava o ordenamento jurídico vigente. Isso não impede nova absolvição; ou seja, anulado o primeiro julgamento, o novo júri popular pode decidir conforme a consciência de cada jurado, reafirmando a absolvição.

Dessa forma, no sistema legal expresso e vigente a soberania do júri prevista na Constituição já está amplamente preservada. A circunstância parece ter sido desconsiderada pela digna e douta maioria do órgão fracionário, causando perplexidade.

O júri popular decide sobre os crimes contra a vida. A vida humana é um dos valores mais altos da Constituição Federal, se não o maior valor (CF, art. 5º, caput). Quando arbitrária e ilegalmente o valor da vida humana é desprezado por um veredicto concreto, a possibilidade de uma única anulação do julgamento popular pelo Tribunal técnico configura valoroso mecanismo jurídico legal de controle do erro, harmônico aos sistemas de "freios e contrapesos", previstos na Constituição Federal. Em resumo, se não se incide em equívoco, por essas razões é que a jurisprudência até agora consolidada no próprio STF vinha reconhecendo a constitucionalidade e admitindo a anulação do júri, por uma única vez, no caso de veredicto arbitrário, manifestamente contrário à prova.

A grande imprensa informa que, no caso concreto agora julgado, a defesa do réu teria sustentado a absolvição na "tese da legítima defesa da honra" do marido supostamente traído. Sob esse aspecto, o precedente pode representar imenso retrocesso, mormente quando todo o ordenamento jurídico moderno caminha no sentido de criar mecanismos de proteção à mulher, via de regra fragilizada dentro da relação familiar, prevendo medidas protetivas como as constantes da Lei Maria da Penha e instituindo a figura do feminicídio. E essa linha de argumento aparentemente teria sido destacada no voto vencido do Ministro Barroso.

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O ponto é da mais alta relevância. Não pode ser ignorado, já pela absoluta desproporcionalidade em se pretender sobrepor a suposta honra de alguém à vida humana. A propósito do tema, na década de 1940 o velho mestre HUNGRIA pontuava que, no plano ético e jurídico, só os bárbaros podem ver a honra de alguém fixada em outra pessoa, no corpo ou no comportamento de outra pessoa; seja a mulher, o companheiro, parceira(o) no relacionamento amoroso. A verdadeira honra de toda e qualquer pessoa é um bem só dela, que nunca se pode admitir seja atingido pelo comportamento de ninguém; pelo menos no mundo civilizado. Do contrário, arriscamos condenar nossos filhos a se transformarem em potenciais assassinos em defesa de "falsa honra", que nada mais é do que simples selvageria. E arriscamos condenar nossas filhas à condição de potenciais vítimas dessa violência selvagem. Isso, dentre outras hipóteses variantes da mesma barbárie, também ligadas a questões de gênero.

KANT já postulava que as pessoas tem dignidade e as coisas tem preço. A pessoa humana não é coisa e nunca se deve admitir possa ser propriedade de alguém. É torpe, vil, mesquinha e selvagem a conduta de quem reduz o ser humano a coisa de propriedade de feminicida ou de homicida (coisa, propriedade de alguém, como na repetida expressão "não é minha, não será de mais ninguém").

Em situação similar de necessidade imperiosa de preservação da vida e dignidade da pessoa humana, pode-se entrever outras hipóteses a serem atingidas pela mudança da orientação jurisprudencial. Como as de julgamento pelo júri popular de crimes contra a vida em casos de violência policial ou de violência praticada pelo crime organizado, não raro a intimidar o cidadão comum que compõe o corpo de jurados.

Nas últimas décadas nós, mulheres e homens em exercício no Ministério Público de São Paulo e em cumprimento dos nossos deveres, temos buscado dar concretude a esses valores da Constituição Federal e da lei penal, contribuindo para fixação da jurisprudência até aqui consolidada no Tribunal de Justiça de São Paulo e nos Tribunais Superiores. Dentre ela, a tese de não configuração de excludente de ilicitude por suposta "legítima defesa da honra" em casos de feminicídio/homicídio. Se não consensuais, os entendimentos aqui expressados parecem-nos firmemente majoritários dentre os membros do MPSP; e têm sido constantes nas recomendações da Corregedoria-Geral do Ministério Público e demais órgãos da Administração Superior, no exercício das respectivas parcelas do dever legal do órgão acusatório.

Não é demais ressaltar que o processo penal comporta a expressão de outros dois direitos fundamentais distintos e que apenas aparentemente se contrapõem: o direito à liberdade e o direito à segurança. Para promoção da segurança como direito fundamental de todos, o processo deve viabilizar a concretização do direito penal, especialmente nos crimes contra a vida. Sem o que, o direito penal não funciona como mecanismo real; em outras palavras, é desmoralizado se não der a resposta prometida em lei. A ineficiência dos instrumentos postos à disposição da sociedade para o combate à criminalidade coloca em risco direitos e garantias fundamentais, já por promover e estimular a "justiça com as próprias mãos".

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Preocupa-nos sobremaneira a possibilidade de perda do mecanismo de controle do erro e arbitrariedade das decisões do júri existente na lei processual penal, que parece modesto e observador da soberania do júri prevista na Constituição, quando sopesado à magnitude do direito constitucional à vida no Estado democrático e ao princípio da dignidade humana. A falta de mecanismo de freio e contrapeso pode vir a representar porta aberta à impunidade de gravíssimos crimes, em comprometimento dos altos valores republicanos.

*Tereza Cristina Maldonado Katurchi Exner é corregedora-geral do MPSP; Jorge Assaf Maluly e Martha de Toledo Machado são membros eleitos do Órgão Especial do Colégio de Procuradores de Justiça do MPSP; Motauri Ciocchetti de Souza é vice-corregedor-geral do MPSP; Pedro Henrique Demercian é membro eleito do Conselho Superior do MPSP

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