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A pobreza menstrual e a dignidade da pessoa humana

Por Rogério Tadeu Romano
Atualização:
Presidente Jair Bolsonaro. Foto: Dida Sampaio/Estadão

I - O FATO

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Toda pessoa humana traz consigo a dignidade, independente de sua situação social, pelo simples fato de existir. Kant já dizia que "o homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo". E é justamente pelo fato de o homem existir e coexistir em sociedade que a dignidade pode aumentar ou diminuir, devendo-se acrescer um limite social à garantia desta, isto é, haverá dignidade ilimitada desde que não se viole outra ou a de outrem. Aqui vale lembrar que nem à própria dignidade é permitida a violação, cabendo ao Estado o dever de preservar quaisquer situações que coloquem em risco a dignidade humana.

Continuando com o pensamento de Kant, que foi o Aristóteles da modernidade:

"Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chama coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo arbítrio."

O tema da pobreza menstrual, no ordenamento constitucional, tem proteção fixada logo de início, pois assim prescreve o artigo 1º, incisos II e III, veja-se:

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"Art. 1º-A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(...)

III - a dignidade da pessoa humana;"

O tema da pobreza menstrual é algo que exige a efetividade da norma acima lembrada.

Ademais, a C.R.F.B de 1988, em seu artigo 3º, inciso IV, estabelece, além de uma sociedade justa, a erradicação da pobreza e da redução das desigualdades sociais, que é um dos objetivos fundamentais do Estado, qual seja, o de promover o bem estar de todos, sem preconceito ou discriminação.

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Eis aí, o princípio da dignidade da pessoa humana.

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Trata-se de princípio impositivo norteador exposto pela Constituição-cidadã de 1988.

Ingo Wolfgang Sarlet (Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011), ressalta que:

"A Constituição de 1988 foi a primeira na história do constitucionalismo pátrio a prever um título próprio destinado aos princípios fundamentais, situado - em homenagem ao especial significado e função destes - na parte inaugural do texto, logo após o preâmbulo e antes dos direitos fundamentais. Mediante tal expediente, o Constituinte deixou transparecer de forma clara e inequívoca a sua intenção de outorgar aos princípios fundamentais a qualidade de normas embasadoras e informativas de toda a ordem constitucional, inclusive dos direitos fundamentais, que também integram aquilo que se pode denominar de núcleo essencial da Constituição material. Igualmente sem precedentes em nossa evolução constitucional foi o reconhecimento, no âmbito do direito positivo, do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III, da CF), que não foi objeto de previsão no direito anterior. Mesmo fora do âmbito dos princípios fundamentais, o valor da dignidade da pessoa humana foi objeto de previsão por parte do Constituinte, seja quando estabeleceu que a ordem econômica tem por fim assegurar a todos uma existência digna (art. 170, caput), seja quando, no âmbito da ordem social, fundou o planejamento familiar nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável (art. 226, § 6º), além de assegurar à criança e ao adolescente o direito à dignidade (art. 277, caput). Assim, ao menos neste final de século, o princípio da dignidade da pessoa humana mereceu a devida atenção na esfera do nosso direito constitucional."

O Estado tem a função essencial de proteger a dignidade da pessoa humana e, sucessivamente, de promovê-la. Assim, o indivíduo ao encontrar-se em situação nociva de sua dignidade, merecerá de proteção, ou seja, o Estado deverá atuar como promotor da dignidade humana.

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Essas ilações são feitas diante de um quadro em que a Constituição de 1988 elegeu um modelo democrático-social norteador que se divorcia das regras de mercado e procura atender a dignidade do cidadão.

Fala-se no que se assenta como bem-estar social.

Fala-se que há um limite a essa imposição: a dotação de recursos essenciais sem os quais nada poderia ser feito. O Estado estaria limitado a recursos.

Essa visão contrasta com o que a Constituição que determina: Se há indignidade é preciso que o Estado socorra. É dever do Estado.

A própria Constituição Federal de 1988 prevê um regime econômico baseado na justiça social a todos, assegurando, deste modo, igualdade de oportunidades econômicas para todos, em relação ao acesso aos recursos básicos.

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Volto-me então a ao projeto de lei que prevê a distribuição gratuita de absorventes.

O projeto de Lei 4968/19, aprovado pelo Congresso Nacional, que prevê a distribuição gratuita de absorventes em escolas públicas e penitenciárias, além de obrigar a inclusão do produto em cestas básicas, sofreu o veto do presidente Jair Bolsonaro. A decisão publicada no Diário Oficial da União de quinta-feira, dia 7 de outubro, fundamenta que o texto do projeto não estabeleceu fonte de custeio e, caso não vetasse, poderia sofrer o crime de responsabilidade fiscal.

O Presidente da República manteve apenas os trechos da Lei que obrigam o Poder Público a promover campanhas de informação sobre saúde menstrual, e que autoriza os gestores educacionais a realizar os gastos necessários para prover esses produtos de higiene e outras questões relacionadas ao tema.

O caso coloca às escâncaras os despropósitos dos poderes públicos que equacionam recursos para fundos eleitorais e partidários e não alocam recursos para o combate à pobreza.

Isso nos indaga sobre o fenômeno jurídico das chamadas leis reforçadas.

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Falo sobre o fenômeno das chamadas leis reforçadas consoante exposição do ministro Gilmar Mendes.

"Nesse aspecto, as relações estabelecidas entre o texto constitucional e as legislações financeiras amoldam-se com precisão ao chamado fenômeno da Leis Reforçadas, desvendado na doutrina constitucional portuguesa por Carlos Blanco de Morais que, ao se referir à existência de uma relação de ordenação legal pressuposta, implícita ou explicitamente na Constituição, aduz que: "As leis reforçadas pontificam num momento em que os ordenamentos unitários complexos são confrontados com uma irrupção poliédrica de actos legislativos, diferenciados entre si, na forma, na hierarquia, na força e na função, e cujas colisões recíprocas não são isentas de problematicidade quanto à correspondente solução jurídica, à luz dos princípios dogmáticos clássicos da estruturação normativa" (MORAIS, Carlos Blanco de.As leis reforçadas: as leis reforçadas pelo procedimento no âmbito dos critérios estruturantes das relações entre actos legislativos.Coimbra Editora, 1998, p. 21).Ainda em âmbito doutrinário, a propósito, a tese das Leis Reforçadas logrou franco desenvolvimento na obra de J. J. Gomes Canotilho ao explorar justamente a função parametrizadora que as leis de Direito Financeiro exerciam sobre a legislação ordinária do orçamento. Como destacado pelo autor, a contrariedade da atuação do legislador ordinário na edição da lei orçamentaria em relação às leis-quadro que extraem a sua validade da Constituição Federal suscita a inconstitucionalidade indireta da norma. Nesse aspecto, destacam-se as considerações do autor: Se considerarmos a possibilidade de a lei do orçamento poder conter inovações materiais, parece que o problema não será já só o de uma simples aplicação do princípio da legalidade, mas o da relação entre dois actos legislativos e quiordenamentos sob o ponto de vista formal e orgânico. A contrariedade ou desconformidade da lei do orçamento em relação às leis reforçadas, como é a lei de enquadramento do direito financeiro, colocar-nos-ia perante um fenômeno de leis ilegais ou, numa diversa perspectiva, de inconstitucionalidade indireta. (CANOTINHO, J. J. Gomes. Alei do orçamento na teoria da lei. In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor. J. J. Teixeira Ribeiro. Coimbra: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, número especial, 1979, v. II, p. 554)."

Em seu julgamento o ministro Gilmar Mendes fala sobre o fenômeno das chamadas leis reforçadas.

Nesse aspecto, as relações estabelecidas entre o texto constitucional e as legislações financeiras amoldam-se com precisão ao chamado fenômeno da Leis Reforçadas, desvendado na doutrina constitucional portuguesa por Carlos Blanco de Morais que, ao se referir à existência de uma relação de ordenação legal pressuposta, implícita ou explicitamente na Constituição, aduz que: "As leis reforçadas pontificam num momento em que os ordenamentos unitários complexos são confrontados com uma irrupção poliédrica de actos legislativos, diferenciados entre si, na forma, na hierarquia, na força e na função, e cujas colisões recíprocas não são isentas de problematicidade quanto à correspondente solução jurídica, à luz dos princípios dogmáticos clássicos da estruturação normativa" (MORAIS, Carlos Blanco de.As leis reforçadas: as leis reforçadas pelo procedimento no âmbito dos critérios estruturantes das relações entre actos legislativos. Coimbra Editora, 1998, p. 21).Ainda em âmbito doutrinário, a propósito, a tese das Leis Reforçadas logrou franco desenvolvimento na obra de J. J. Gomes Canotilho ao explorar justamente a função parametrizadora que as leis de Direito Financeiro exerciam sobre a legislação ordinária do orçamento. Como destacado pelo autor, a contrariedade da atuação do legislador ordinário na edição da lei orçamentaria em relação às leis-quadro que extraem a sua validade da Constituição Federal suscita a inconstitucionalidade indireta da norma. Nesse aspecto, destacam-se as considerações do autor: Se considerarmos a possibilidade de a lei do orçamento poder conter inovações materiais, parece que o problema não será já só o de uma simples aplicação do princípio da legalidade, mas o da relação entre dois actos legislativos e quiordenamentos sob o ponto de vista formal e orgânico. A contrariedade ou desconformidade da lei do orçamento em relação às leis reforçadas, como é a lei de enquadramento do direito financeiro, colocar-nos-ia perante um fenômeno de leis ilegais ou, numa diversa perspectiva, de inconstitucionalidade indireta. (CANOTINHO, J. J. Gomes. A lei do orçamento na teoria da lei. In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor. J. J. Teixeira Ribeiro. Coimbra: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, número especial, 1979, v. II, p. 554)."

E conclui o ministro Gilmar Mendes:

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"A partir de uma leitura sistemática dessas normas, tem-se que a efetivação de despesas relacionadas a esses benefícios requer (a)demonstração da origem dos recursos para o seu custeio total; (b)instituição da despasse com a estimativa trienal do seu impacto; (c)demonstração de que o ato normativo não afetará as metas de resultados fiscais e (d) demonstração de que seus efeitos financeiros, nos períodos seguintes serão compensados pelo auto permanente de receita ou pela redução permanente de despesa (LEITE, Harrison. Manual de Direito Financeiro. 8ª Ed. São Paulo, Editora JusPODIVUM, 2019, p. 531)...."

Para tanto, reforça-se a leitura do artigo 17 da Lei de Responsabilidade Fiscal:

"Art. 17. Considera-se obrigatória de caráter continuado a despesa corrente derivada de lei, medida provisória ou ato normativo que fixem para o ente a obrigação legal de sua execução por um período superior a dois exercícios.§1º Os atos que criarem ou aumentarem despesa de que trata o caput deverão ser instruídos com a estimativa prevista no inciso I do art. 16 e demonstrar a origem dos recursos para seu custeio.§2º Para efeito do art. 1º, o ato será acompanhado de comprovação de que a despesa criada ou aumentada não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo referido no §1º do art. 4º, devendo seus efeitos financeiros, nos períodos seguintes, ser compensados pelo aumento permanente de receita ou pela redução permanente de despesa.§3º Para efeito do §2º, considera-se aumento permanente de receita o proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.§4º A comprovação referida no §2º, apresentada pelo proponente, conterá as premissas e metodologia de cálculo utilizadas, sem prejuízo do exame de compatibilidade da despesa com as demais normas do plano plurianual e da lei de diretrizes orçamentárias.§5º A despesa de que trata este artigo não será executada antes da implementação das medidas referidas no §2º, as quais integrarão o instrumento que a criar ou aumentar".

Cabe ao Poder Público a magna missão de adimplir dever que lhe dá a Constituição: combater a pobreza.

Com o veto, "a bola está com o Congresso" a quem cabe dizer se derruba ou não o veto presidencial, inclusive trazendo à colação recursos para tal tarefa que repito, é uma obrigação do Estado para com a cidadania.

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Ademais o reconhecimento da falta de recursos para tal mister é o reconhecimento taxativo da omissão do Estado na prática de políticas sociais.

*Rogério Tadeu Romano, procurador regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado

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