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A nova onda de compra e venda de empresas no Brasil

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Por Marcello Lobo
Atualização:
Marcello Lobo. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

O momento é de reflexão e muito debate. A pandemia colocou todos em situação totalmente inusitada e imprevisível, com efeitos ainda imensuráveis no campo da saúde e da economia. Esse momento traz mais perguntas do que respostas, e uma constante busca de como será o "novo normal".

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Debates e seminários virtuais (Webinars) têm sido uma das características desse período. Com aproximadamente 75 dias de distanciamento social no Brasil e em Nova Iorque, realizamos, Pinheiro Neto Advogados e Debevoise & Plimpton LLP, um seminário conjunto no qual discutimos alguns dos aspectos que identificamos como tendências na próxima onda de operações de compra e venda de empresas (M&A) no Brasil ("COVID-19 & Latin America - The New Wave of Brazilian M&A"). As conclusões resumidas neste artigo refletem as contribuições de todos os debatedores¹, e podem ser úteis para investidores na reabertura dos negócios.

Em primeiro lugar, já é quase um consenso que o retorno ao normal não significará voltar ao que considerávamos como o curso normal dos negócios vigente antes da pandemia. A volta será gradual e exigirá de todos uma adaptação às novas circunstâncias, com novos desafios e oportunidades para cada setor econômico.

Assim, operações de M&A deverão ocorrer e provavelmente terão como objeto empresas que (i) tenham um modelo de negócios resiliente, capaz de absorver o impacto e se adaptar às novas circunstâncias; (ii) possam ser avaliadas de forma razoável; e (iii) embora em dificuldades, possam não estar insolventes.

Ainda que investidores já estejam identificando oportunidades em setores e empresas com dificuldades, as operações de M&A somente devem ter um maior ritmo quando for menor o grau de incertezas quanto à economia e aos setores afetados. Algumas perguntas precisarão ser respondidas: como a crise impactou as operações da empresa? O balanço patrimonial da empresa foi afetado de forma relevante pela pandemia? Quais as chances da empresa ter sucesso em seus negócios no futuro?

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Diante desse contexto, o processo de auditoria legal e a negociação de declarações e garantias nos contratos precisarão ser realizados "sob medida" para cada operação, tendo o objetivo de esclarecer ou trazer um mínimo de segurança sobre quais serão os impactos duradouros na condução dos negócios. É preciso entender também de que forma a administração da empresa cultivou sua relação com clientes, fornecedores, colaboradores, órgãos reguladores e outras partes interessadas durante a crise.

Preocupações com solvência e liquidez terão papel relevante nas operações, não só em declarações financeiras, mas também nos mecanismos de ajustes de preço após a conclusão da operação, considerando novas exigências quanto ao nível adequado de capital de giro e endividamento.

Muita atenção foi dada no início da pandemia às definições de efeito adverso relevante (ou MAE) em contratos já assinados, mas cuja conclusão ainda não havia ocorrido. Dúvidas se essas definições cobririam ou não uma pandemia. Enquanto algumas disputas já se resolveram, nossa expectativa é que investidores terão atenção especial a quais serão os futuros eventos relevantes na negociação de novas operações: exposição da empresa às mudanças climáticas? Expansão das ações de responsabilidade social e implicações no retorno ao investimento? A variação cambial terá maior relevância nos negócios da empresa?

Acreditamos que o processo de auditoria legal não será mais o mesmo em muitos aspectos. Enquanto as áreas de conformidade (compliance), ambiental, fiscal e trabalhista não deverão perder sua relevância, outras se juntarão à lista de áreas que exigirão maior foco. A área de saúde, meio ambiente e segurança (SMS), incluindo novas exigências sobre equipamentos de proteção individual (EPI), testagem de funcionários e adaptação de instalações, provavelmente assumirá um papel de destaque em todas as operações, independentemente da atividade da empresa ser ou não considerada perigosa.

O mesmo deve ocorrer com questões de reputação e imagem, devido às novas exigências, impostas pelo mercado, quanto à responsabilidade social da empresa. Vimos um incremento significativo em doações e projetos na área de saúde e assistência básica (distribuição de alimentos e itens de higiene), inclusive em parceria com governos e concorrentes.

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Muita atenção deverá ser dada a essas parcerias, tanto sob o ponto de vista de conformidade como de defesa da concorrência, ainda que a intenção seja fazer a coisa certa. Crises costumam representar pressão adicional por resultados, o que pode levar a condutas abusivas e a condutas ilícitas, trazendo um elemento adicional de preocupação na auditoria legal.

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A análise dos contratos relevantes para o negócio também precisará ser mais profunda e atingir a real intenção das partes, e as bases do negócio. Além disso, é preciso identificar se as relações da empresa com seus clientes, fornecedores e colaboradores tem foco no longo prazo, se é sólida e sobrevive a abalos como a pandemia.

Dificuldades na cadeia de suprimentos, muitas vezes global, podem resultar em pressão pela substituição de fornecedores, ainda que com custos adicionais. Novamente, atenção especial a questões de conformidade quanto à seleção de novos fornecedores e nas novas condições de contratação. Da mesma forma, o setor público teve que adquirir com urgência diversos bens e serviços em resposta à pandemia, com dispensa do processo usual de licitação. Várias denúncias de superfaturamento já surgiram, o que pode gerar um grande número de investigações a serem avaliadas.

Mas é preciso analisar também os legados da pandemia. O período de crise pode ter resultado em litígios e na adesão a programas governamentais com obrigações acessórias, como proibições na distribuição de dividendos, demissões, entre outras, que podem perdurar um período superior à crise em si. Além disso, no campo da concorrência, autoridades impuseram controles de preços a alguns setores, especialmente farmacêuticos e equipamentos médicos.

Algumas dificuldades logísticas poderão ser enfrentadas. O processo de auditoria legal, inclusive técnica, pode ter que ser mais virtual e menos presencial. Esse novo modus operandi pode trazer desconfortos, inclusive, em questões confidenciais e sensíveis, como apresentação da administração sobre o negócio (management presentation) e entrevistas sobre investigações na área de conformidade, que ainda costumavam ser realizadas pessoalmente e com grupo reduzido.

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Concluída com sucesso a auditoria legal, os desafios não param por aí. Para que uma negociação seja bem conduzida e concluída, é fundamental, principalmente no Brasil e em algumas culturas similares, a construção de um relacionamento de confiança com quem está do outro lado da mesa. Esse processo se dá naturalmente quando há reuniões presenciais, com conversas informais antes da reunião começar e durante pausas para as refeições. Além disso, muitas informações relevantes para a propositura de soluções aos impasses dependem da reunião presencial, inclusive linguagem corporal, tom de voz, reações involuntárias como expressões faciais ao escutar uma proposta. A negociação por meio de videoconferência não terá a mesma dinâmica e poderá gerar muitos ruídos na comunicação.

No que diz respeito à assinatura dos documentos da operação e à própria conclusão do negócio, assinaturas digitais parecem ser um caminho sem volta. Mas algumas questões ainda precisam ser resolvidas, inclusive a outorga de procurações no exterior, a assinatura por partes em diferentes países, e a assinatura de livros físicos, como o livro de transferência de ações nominativas.

A pandemia e seus efeitos também deverão trazer uma expectativa de abordagem mais macro pelos órgãos de defesa econômica, poder concedente, agências reguladoras, financiadores e outras partes interessadas cujos consentimentos possam ser necessários. Sem prejuízo dos usuais requisitos formais, como demonstração da capacidade financeira, técnica, fiscal e jurídica, é importante que tenham uma visão pragmática e senso de urgência na análise de operações, principalmente quando forem essenciais para a continuidade da empresa e, consequentemente, de empregos, arrecadação tributária e atendimento às necessidades dos consumidores ou usuários dos bens e serviços.

Contudo, vale a ressalva de que autoridades de defesa da concorrência são bastante relutantes em aplicar de forma indiscriminada o argumento de empresa em dificuldades (failing firm). Os órgãos de defesa da concorrência no Brasil já indicaram que serão extremamente cuidadosos na aplicação desse conceito e vão avaliar de forma detalhada as justificativas sobre a real necessidade de uma operação nesse contexto.

Por outro lado, na medida que a legislação assim permita, reguladores tendem muitas vezes a preferir uma "solução de mercado" à necessidade de intervenção na empresa responsável pela atividade regulada.

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Toda essa reflexão sobre operações de M&A, no entanto, só faz sentido se acreditarmos que as elas voltarão a um ritmo intenso no futuro próximo. E por que acreditamos ser o caso?

As regras de oferta e demanda mudaram em diversos setores. A pandemia e o distanciamento social têm demonstrado a relevância de determinados setores, como agronegócio (alimentos), telecomunicações, energia elétrica, gás, saúde e saneamento, tecnologia, entre outros. Por outro lado, têm afetado muitos outros, como transporte, moda, turismo, consumo.

Os novos hábitos e a crise exigirão reposicionamento das empresas, mudança em suas estratégias, reorganização de seus investimentos, seja para levantar recursos, diminuir despesas ou simplesmente para focar no negócio principal. No setor público, as despesas extraordinárias, e necessárias para amortecer os impactos da crise, deverão resultar em medidas também extraordinárias de arrecadação, como privatizações e desinvestimentos.

Mas devemos ter diferentes tipos de operações, e diferentes ondas. Alguns grupos precisarão lutar pela sobrevivência, com a venda de empresas em dificuldades, eventualmente em recuperação, em operações de M&A que tendem a ter um ritmo bastante acelerado, com auditoria legal mais superficial, grandes riscos e incertezas para os compradores, com pouco recurso ao vendedor.

Em outros casos, a necessidade de reposicionamento no mercado determinará a necessidade de compra ou venda, com base em decisão de olho no longo prazo, estratégica, em que se busca ampla análise da empresa a ser adquirida, aversão a risco e negociação de um pacote de indenizações e garantias substanciais do vendedor.

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Por fim, há sempre aqueles que poderão aproveitar oportunidades de maior retorno no longo prazo, caso dos compradores que estejam capitalizados em momento de menor liquidez, como fundos de capital privado (private equity), que tenham capacidade de precificar o risco e de adaptação às circunstâncias e necessidades da oportunidade de negócio, inclusive em termos de prazo e condições impostos pelo vendedor.

Haverá, portanto, uma nova onda de operações de M&A no Brasil. Mas as operações não serão como antes. Nenhuma crise se compara à atual. Com isso, serão ainda mais complexas e desafiadoras, cada uma com particularidades adicionais de acordo com a realidade de cada setor e a situação das partes envolvidas.

¹ Maurizio Levi-Minzi e Andrew Levine, sócios de Debevoise & Plimpton LLP, e Henry Sztutman, José Alexandre Buaiz Neto e Marcello Lobo, sócios de Pinheiro Neto Advogados.

*Marcello Lobo, sócio de Pinheiro Neto Advogados

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