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A nova Lei de Licitações e os velhos problemas do Direito Penal empresarial

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Por Dante D?Aquino
Atualização:
Dante D'Aquino. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Em 1º de abril de 2021, a nova Lei de Licitações se tornou o novo marco legal da gestão pública no país. O diploma substitui, de uma só vez, a lei 8.666/93, a lei do Pregão (10.520/02) e a lei do Regime Diferenciado de Contratações (RDC - Lei 12.462/11). O texto prevê que, nos próximos 2 anos, os órgãos públicos poderão optar entre utilizar as regras antigas ou as novas. Ao final desse prazo de adaptação, o novo texto será de observância obrigatória.

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A lei nº 14.133/2021 prevê cinco modalidades de licitação: concorrência, concurso, leilão, pregão e diálogo competitivo. Extingue a tomada de preços e o Regime Diferenciado de Contratações. A novidade é diálogo competitivo. Já prevista e usual na Europa, essa forma de contratar com a administração pública se caracteriza por negociações entre o órgão público e os potenciais contratantes, previamente selecionados por critérios objetivos.

A nova Lei de Licitações estabelece, ainda, um título inteiro para tratar das irregularidades com a inclusão, no Código Penal, de um capítulo específico para tratar dos crimes em licitações e contratos administrativos. E, nesse ponto, uma reflexão necessária tem sido negligenciada.

Mencionado capítulo versa, na realidade, sobre o risco empresarial de empreender e contratar com o poder público. O "Código Penal", com todo seu carregado aspecto simbólico, foi acionado para tratar do tema. Passou a prever, expressamente, uma coletânea de artigos com vários tipos penais punidos com reclusão intitulado "dos crimes em licitações e contratos administrativos".

A reflexão que deve ser feita, em nossa visão, é a de que o país demanda por infraestrutura em diversas áreas estratégicas. Há o novo marco do saneamento como divisor; as concessões de estradas e rodovias; os portos, aeroportos e a malha (ferro)viária, para ficar nos exemplos mais urgentes. Contratos com a administração pública serão a temática de toda a década que se inicia.

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Mas descendo à microfísica do empreendedor, constata-se que o rol de documentos exigidos que, na verdade, representam requisitos obrigatórios a serem preenchidos pelas empresas que pretendem participar de certame licitatório, já é, notadamente, um entrave à iniciativa privada. Some-se a isso, agora, uma reforço da lei em "carimbar" com o estigma de "crime", questões que poderiam ser mantidas na esfera cível e administrativa.

Essa vocação do legislativo, de criminalizar para tornar importante, amplia a insegurança jurídica dos empresários e dos investidores, sem trazer benefício jurídico ou prático aos processos licitatórios. Além disso, aumenta o número de demandas judiciais pois, agora, uma infração ao "caráter competitivo da licitação", por exemplo, poderá ter três consequências concomitantes, todas desaguando no judiciário - a ação de improbidade administrativa; a ação indenizatória e a ação criminal (com inquérito que a antecede).

Observe-se que a lei de improbidade administrativa, a qual sujeita as empresas e pessoas físicas que contratam com a administração pública, já prevê elevadas punições absolutamente suficientes para reprimir e prevenir a prática de qualquer irregularidade havida na contratação com o poder público. Dentre as punições da lei de improbidade, estão, por exemplo, a proibição de contratar com o poder público, o bloqueio de bens e valores em conta corrente e declaração de inidoneidade da empresa. Tais sanções geralmente são aplicadas antes da sentença, ainda em etapa inicial do processo, ou mesmo deferidas em decisão liminar para assegurar o "ressarcimento ao erário público", por segurança.

Ora, portanto, não resta dúvida de que o direito já dispõe de arsenal suficiente para reprovar e reprimir eventuais irregularidades nas contratações públicas. Falta, é verdade, a melhor aplicação e fiscalização dos processos licitatórios, carência que não será suprida pela previsão, no texto da lei, de algumas condutas tipificadas como "crime". Nesse ponto, ao que se constata, a carência não é legal, mas, sim, material, executiva e fiscalizatória.

Outro aspecto é a insegurança que a própria atividade judicial traz à dinâmica empresarial. A pessoa jurídica, o administrado, o jurisdicionado, todos à mercê da semântica oscilante do Poder Judiciário que, em sua máxima instância, atua com 11 diferentes pontos de vista, cada qual com numerosas decisões monocráticas, não raro conflitantes entre si. A pacificação do tema, somente no dia em que o Plenário da Corte se reunir para essa finalidade. E iniciativa privada, que tem pressa, não consegue conviver com a essa dialética.

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Quando se desce à interpretação de termos próprios do direito penal, não é um vaticínio afirmar que as empresas licitantes ficarão reféns da interpretação judicial de termos como "frustrar" ou "fraudar o caráter competitivo". Reflita-se aqui: o que é fraudar o caráter competitivo? Se duas pessoas com o mesmo sobrenome, pertencem e atuam para CNPJ's diferentes, concorrem em um mesmo certame, isso configura uma forma de "fraudar o caráter competitivo"? Formam um grupo econômico? E a resposta é: depende.

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E esse é o problema.

A resolução do "depende" exigirá tempo e custo que a iniciativa privada não pode suportar. E tudo poderia ser mais simples, se mantida a disciplina e a regulação do tema apenas na lei de improbidade (e o "apenas" aqui é um eufemismo, pois a lei de improbidade prevê verdadeiro sistema de repressão, como dito).

Ademais, cumpre também recordar as consequências advindas da própria existência do processo - que geralmente importam em certidões negativas, restrições à linhas de crédito e proibição de contratar com a administração pública. Consequências demais para se emprestar o carimbo de "crime" às condutas que poderiam ser tratadas na esfera cível e administrativa.

Em que pese todas as observações feitas acima, o fato é que a nova lei promoveu, por exemplo, o aumento da pena imposta a quem "admite, possibilita ou dá causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei". Ou seja, os casos e que a dispensa ou inexigibilidade de licitação revela-se fraudulenta. Nessa hipótese, a pena passa a ser de reclusão de 04 a 08 anos. E a pena, quando prevista na modalidade de "reclusão" e, não, "detenção", admite o regime inicial fechado, desde que preenchidas mais algumas condições (que, aliás, em parte, estão sujeitas à interpretação judicial).

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Ainda em relação a essa mudança, atente-se que a pena mínima, quando superior a 4 anos, impede a substituição por restrição de direitos (artigo 43 e 44 do Código Penal), bem como proíbe a realização de acordo de não persecução penal - ANPP - instituto previsto na lei anticrime que faz parte da nova sistemática de composição da justiça criminal, voltada a reduzir a carga de processos criminais dos foros.

Dessa forma, a mudança nos patamares das penas, característica que marca a nova lei de licitações, traz importantes consequências jurídicas para os comportamentos previstos que, observe-se, não apresentam violência à pessoa (geralmente a exposição de motivos da lei que justifica o aumento de pena para determinados tipos é acompanhada de argumentos que se apoiam na violência das condutas). A prática de contratação direta ilegal era prevista no artigo 89 da Lei 8.666/93 com pena de 03 a 05 anos de "detenção". O regime punitivo, que era mais brando e permitia a substituição da pena por prestação de serviços comunitários, foi alterado.

Ainda, houve mudança na conduta de "frustrar ou fraudar" o caráter competitivo da licitação, um dos mais importantes modelos de conduta proibida - reúne grande discussão judicial - agora está disposto no artigo 337-F do Código Penal. A pena, da mesma forma, foi alterada. Reclusão de 04 a 08 anos, além de multa. Ou seja, mesmo sendo conduta sem violência, ganhou tratamento severo pelo novo diploma.

Bem, com todo esse (des)incentivo à contratar com o Poder Público, a nova lei de licitações nasce com ranços retrógrados, típicos da crença simbólica de que prever mais crimes no texto da lei irá melhorar os procedimentos da prática. Na realidade, termina por elevar a insegurança jurídica e, na ponta, desestimular a iniciativa privada e o desenvolvimento.

*Dante D'Aquino é sócio do Vernalha Pereira Advogados, mestre em direito penal empresarial, especialista em direito constitucional, professor de processo penal e advogado

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