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A nova Lei de Improbidade Administrativa e a morte dos princípios

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Por Leonardo Bellini de Castro
Atualização:
Leonardo Bellini de Castro. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

O Estado, tal qual o indivíduo, para o bom desempenho de seu mister há de prestar tributo às virtudes, sendo certo que no caso desse corpo político as virtudes são aquelas cívico-políticas.

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Disso deriva que a transcendência própria da atividade política, que deve ter em mira os interesses que trespassam o individual ou de uma classe, está subjugada aos termos normativos assegurados nas Constituições, que nada mais são que documentos político-jurídicos destinados a guiar os governantes nos aspectos substanciais da vida pública.

É fato, lado outro, que a complexidade da vida em suas múltiplas dimensões indica que a tarefa legiferante nunca poderá regrar todos os aspectos sociais em razão de uma inviabilidade prática, motivo pelo qual o uso dos princípios, como pautas normativas indicativas dos valores mais caros à sociedade, passou a ter cada vez mais terreno no campo do direito.

Nesse contexto é que a nossa Constituição Federal enuncia de forma expressa e peremptória os princípios a guiar a Administração Pública, princípios esses que nada mais são que as virtudes políticas básicas para a regência dos negócios do Estado. Aludidos princípios, anunciados como os da legalidade, eficiência, impessoalidade, moralidade e publicidade, constituem os pilares filosóficos de sustentação do edifício republicano.

Dito isso, seria de estranhar, não fosse essa a prática corrente nos negócios afeitos ao Estado Brasileiro, iniciativas legislativas subterrâneas gestadas com o escopo de implodir a arquitetura normativa que dá sustentação para as virtudes cívico políticas.

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Cumpre tornar, pois, uma vez mais ao texto substitutivo preparado pelo deputado federal Carlos Zarattini (PT-SP), que altera o projeto de Lei 10887/2018 que então tramitava, com o escopo de alterar a Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.492/92.

Importante registrar, assim, que a Lei de Improbidade Administrativa, em vigor desde o ano de 1992, capitula atos tidos como ofensivos a estrutura republicana, dividindo-os em moldura tríplice subdividida em atos que implicam em enriquecimento ilícito, prejuízo ao erário e ofensivos aos princípios de regência da atividade administrativa, estabelecendo-se as sanções respectivas para cada modalidade de ato ilícito.

Ocorre que o texto substitutivo altera a legislação então em vigor para anunciar em seu art.11 que as ações ou omissões ofensivas a princípios da Administração Pública que, todavia, não impliquem enriquecimento ilícito ou prejuízo ao erário, nos termos dos arts. 9º e 10 desta Lei, não configuram mais a prática de atos de improbidade administrativa.

Como corolário, as sanções hodiernamente previstas de perda do cargo público, suspensão dos direitos políticos, imposição de multa e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios fiscais ou creditícios deixam de ser aplicáveis, fulminando-se relevante disposição normativa de prevenção e repressão de ilícitos variados.

Os efeitos da revogação do referido dispositivo repressivo se nos afiguram desastrosos para a defesa da moralidade pública e para a tutela do patrimônio imaterial do Estado Brasileiro.

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Curial assinalar, a propósito, que a legislação que reprime a improbidade administrativa se articula com variados outros diplomas legais que tem por escopo organizar a atividade de agentes políticos, legislações essas que impõe um fazer que, quando não observado, não implica necessariamente um prejuízo material ou enriquecimento do agente.

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Em vista disso, acaso se concretize a alteração normativa, o agente público que não observar referidos diplomas legais não estará sujeito a nenhum tipo de sanção, de modo que o conjunto normativo perderia absolutamente seu caráter dissuasório.

Tome-se, por exemplo, a Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/11), que impõe ao gestor público inúmeros deveres concernentes à publicidade administrativa e coibição do segredo governamental, propiciando um maior controle social das atividades políticas.

A referida legislação estabelece no art.32, §2º, que constitui ato de improbidade administrativa a prática do agente público que sonega informações que devam ser públicas. Tal hipótese de punição, desta feita, estaria inviabilizada, uma vez que não se tem aqui propriamente enriquecimento ilícito ou prejuízo ao erário do agente público, embora o segredo governamental que se estaria a assegurar possa ter em mira ocultar a ocorrência de atos dessa natureza.

De outra senda, não será difícil imaginar a multiplicação de publicidade governamental de programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos associadas a nomes, símbolos ou imagens de gestores com vistas a promoção pessoal de tais autoridades, intensificando-se o populismo sem os respectivos meios de controle punitivo nas peias da improbidade, já que a violação ao princípio da impessoalidade não implicaria mais na possibilidade de punição.

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A aprovação de loteamentos irregulares, sem as obras de infraestrutura básicas, de outra linha, tampouco importaria a submissão dos agentes públicos à lei de improbidade administrativa, intensificando-se o crescimento desordenado das cidades.

Na mesma toada, vários crimes contra a Administração Pública, que não envolvem necessariamente o enriquecimento ilícito ou prejuízo ao erário, também deixariam de implicar na potencial punição na Lei de Improbidade Administrativa.

Arrolemos aqui, apenas a título exemplificativo, as fraudes em concursos públicos (art.311-A do Código Penal), a inserção de dados falsos em sistemas de informação (art.313-A do Código Penal), o extravio de documentos públicos (art.314 do Código Penal), a prevaricação (art.319 do Código Penal), a condescendência criminosa (art.320 do Código Penal), a advocacia administrativa (art.321 do Código Penal), a violação de sigilo funcional (art.325 do Código Penal), a violação de sigilo de proposta de concorrência (art.326 do Código Penal), além de vários crimes da licitações, que não exigem haja prejuízo patrimonial propriamente dito, bastando o prejuízo moral.   Até mesmo eventual assédio sexual, moral ou a prática de racismo no âmbito da repartição pública não seriam mais puníveis nas sendas da Lei de Improbidade Administrativa.

A lamentável iniciativa legislativa encaminhada, portanto, criticável em variados e inúmeros outros aspectos, impõe um severo desalento para o incremento das virtudes políticas, caminhando por isso na contramão das expectativas sociais que legitimam o próprio exercício do mandato parlamentar.

*Leonardo Bellini de Castro, mestre em Direito pela USP e promotor de Justiça em São Paulo

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