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A nova ameaça aos direitos autorais

Por Letícia Provedel
Atualização:

Em trâmite desde 1997, o Projeto de Lei 3.968/97, que isenta órgãos públicos e entidades filantrópicas do pagamento de direitos autorais pelo uso de obras musicais em seus eventos, recebeu pedido de urgência para votação no plenário da Câmara, o que vem gerando milhares de notas de protesto de artistas e compositores nas redes sociais.  O PL será votado com outros cinquenta projetos de lei que lhe foram apensados e propõem a isenção total de pagamento de direitos autorais a uma vasta gama de atividades, desde igrejas, emissoras de rádio educativas ou comunitárias, clínicas, consultórios, escritórios, academias de ginástica, hotéis, corpos de bombeiros, instituições e eventos beneficentes, entre outras.   

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A lista de atividades é praticamente ilimitada e acalora uma discussão jurídica em torno da liberdade do Estado de interferir ou limitar nos direitos dos autores e compositores. Na lavra do Ministro Celso de Mello, os direitos e garantias fundamentais não são absolutos e podem sofrer restrições por razões de interesse público, desde que excepcionais e destinadas a proteger a integridade do interesse social (RMS 23. 452/RJ).

Restaria entender os direitos e interesses "sociais" que estão postos na balança.  Qual direito dos administrados justificaria o direito de uso gratuito de obras protegidas por direitos autorais? Afinal, nada impede que essas entidades se valham de obras em domínio público da estirpe de Machado de Assis, Monteiro Lobato, Fernando Pessoa, ou da música de Strauss, Paulo da Portela e Beethoven. Se há um interesse específico no uso da música que ainda está no domínio privado, há que ter embasamento.

A justificativa do autor da proposta, o então deputado  Serafim Venzon (PDT/SC), foi que "tais entidades ajudam o Estado a cumprir sua missão social, razão pela qual deveriam ser beneficiadas" o que acena para o fato de que a função social não está na proteção ao direito autoral em si, mas no acesso a esse direito por aqueles que se dedicam ao cumprimento da "missão social".  Por melhor que seja a intenção, instituir um benefício de isenção de um pagamento que não seria recebido pelo Estado, mas pelo artista, parece se encaixar no caso típico de fazer "cortesia com o chapéu alheio". 

É certo que há interesses reais e de grande relevância para setores da economia, como o turismo, extremamente afetado pela pandemia e que precisa de auxílio do Estado, ao menos temporariamente, para se recuperar. Mas essa situação se difere enormemente, por exemplo, dos cultos religiosos, que, pela própria justificativa do deputado, passariam a ter esse benefício pelo mero fato de terem uma 'missão social'. 

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O leitor mais atento poderia indagar - mas o que a "missão social" tem a ver com a música?  Nada.  Nada além da finalidade de atrair o público, seja ele consumidor pagante ou não.  De qualquer forma, há benefício econômico direto ou indireto para muito além do social.  E isso deve ser discutido com transparência. Ou, em breve, se distribuirão santinhos e salmos impressos com capas de Portinari e Adriana Varejão.

Os motivos econômicos que justificariam a isenção de hotéis, que seria até coerente ao menos enquanto durar o atual cenário econômico-pandêmico, não são os mesmos motivos e interesses que visam isentar igrejas, sociedade filantrópicas, rádios e órgãos governamentais. A vastidão do projeto não permite sequer contrapesar os direitos que estão em conflito para que se compreenda qual deve prevalecer.  

Enquanto a execução "pública" de música em quartos de hotéis segue sob revisão do Judiciário (ADIs 6.295 e 6.307), a rede hoteleira agoniza com a autorregulamentação do setor, que não parece prestar resposta eficaz para as dificuldades enfrentadas. Como estabelecer um critério que diferencie uma pousada de uma rede de hotéis de grande porte? Ou considerar que boa parte dos hóspedes já ouvem as músicas em seu celular, assiste filmes do próprio computador ou sequer liga a TV? O que gera faturamento de um hotel para o outro pode variar imensamente, ainda considerando hotéis que promovem eventos musicais e shows como receita.

É papel do Ecad (e não do Estado), com auxílio das sete associações de música que o administram, considerar nuances, atenuar diferenças e definir critérios para que o trabalho dos músicos e compositores seja reconhecido, mas com equilíbrio e equidade para os contribuintes.  É através de um sistema equilibrado a razoável de cobrança, que se auto regulamente trazendo exceções razoáveis sempre que cabível, se evitaria a discussão de licenças não-voluntárias do Estado a determinadas atividades comerciais às custas dos autores e músicos. Ou seja, solução "de consenso" que traga efetividade aos direitos que estão na balança, sem sacrificar totalmente a nenhum.

Voltando ao PL, notável que não se trata de um "acesso geral à cultura" a justificar o interesse público e social, mas, sim, de obras que estão dentro do prazo legal de proteção. O interesse público está no estímulo à criação e na proteção ao autor, sem os quais não teríamos este legado majestoso.

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Outro ponto não ventilado é a regra da reciprocidade. Ao isentar referidas entidades do pagamento de direitos autorais, a remuneração dos artistas estrangeiros também é afetada. O Brasil é membro signatário de três tratados internacionais no âmbito autoral que trazem o tratamento nacional (reciprocidade) como regra: a Convenção de Berna, a Convenção de Roma e o acordo TRIPs.

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Qualquer que seja o resultado da votação, a utilização não remunerada de bem alheio pode configurar enriquecimento sem causa, que se dá pelo acréscimo de bens ao patrimônio de um, em detrimento de outrem, sem que para isso tenha havido um fundamento jurídico. 

Em todo o caso, a isenção eventual do pagamento não subtrairá do autor seu direito mais básico: de autorizar ou não qualquer tipo de utilização de sua obra e se insurgir contra qualquer tipo de uso por qualquer terceiro.  Assim, poderá sempre tomar medidas, isoladas ou conjuntas, para ver reconhecido seu direito de não ter suas músicas executadas.  Do contrário, estaríamos tratando não de isenção, mas de expropriação de direitos.  Cumprimentar com o chapéu do outro não é o mesmo que lhe roubar o chapéu.

*Letícia Provedel, advogada especialista em direitos autorais e sócia do escritório Souto Correa Advogados

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