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A muleta contra concessões de liminar em habeas corpus

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Por Renato Stanziola Vieira
Atualização:
Renato Stanziola Vieira. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

O respeito do qual são merecedoras as decisões advindas do STF, inclusive as monocráticas na medida em que seus ministros em princípio falam pelo colegiado, só se constrói em ambiente plural e no qual a crítica é bem recebida. Em ambiente democrático, decisões do STF se impõem pelo exemplo de correção, não só pela autoridade de quem as profere.

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Mas, no caso das decisões monocráticas do ministro Luiz Fux a respeito da liminar concedida em ordem de habeas corpus em favor de condenados na rumorosa ação penal da Boate Kiss, é impossível não advertir quanto ao equívoco, agora protagonizado por ele, mas embasado em exemplos passados: a utilização equivocada da Lei 8437, de 1992, para matérias de direito penal e processo penal.

O equívoco, mesmo que não seja o primeiro, é manifesto e deve ser urgentemente objeto de correção por parte dos ministros do STF. Enquanto isso não for percebido, padeceremos todos os brasileiros de decisões esdrúxulas e indefensáveis como essa, que manda à cadeia os denunciados no tristíssimo caso da Boate Kiss, impedindo até mesmo que se conclua como seria o necessário e aceitável, o julgamento de uma ordem de habeas corpus por parte do Tribunal competente.

A Lei 8437 se insere em conhecido contexto de judicialização de atos do Poder Público, no que se liga a matérias de direito administrativo. Trata, direta e exclusivamente, de interesses da Fazenda Pública, inclusive tributários. Ela foi promulgada com a subscrição do então ministro da Economia, causou alterações pontuais na legislação processual civil brasileira e veio na linha de edições e reedições de sucessivas medidas provisórias (além da rumorosa Medida Provisória 1984). Referida lei, aliás, conecta-se diretamente com a Lei 9494, que disciplina propriamente situações de cautelares contra a Fazenda Pública.

O objeto da Lei 8437, como das normas legais ou infralegais que redundaram em sua redação vigente, é inquestionável: trata de situações de interesse da Fazenda Pública, de direito processual civil. É, pois, um grave erro usar qualquer de suas previsões como se fossem aplicáveis em cenário de direito penal ou direito processual penal. Só de lembrança, importante processualista civil que é Cássio Scarpinella Bueno teceu longas considerações sobre essa lei em seu livro "O Poder Público em Juízo" (Ed. Max Limonad, 2000).

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Enquanto, pois, a interpretação equivocada de que a lei, e especialmente a decisão monocrática de "suspensão de segurança" se aplicar ao Processo Penal, o Supremo Tribunal Federal continuará dando maus exemplos, como esse é apenas o mais recente.

E é também curioso que enquanto uma pletora de habeas corpus e de recursos em habeas corpus ou não sejam sequer conhecidos, ou quando são, tenham pedidos negados em razão de posicionamentos os mais conservadores por parte dos integrantes dos tribunais de cúpula, notadamente por apego a questões de competência (exemplo: Súmula 691, STF), nada disso se veja no atalho utilizado - e autorizado indevidamente --, cujo objeto é suspender medidas liminares concedidas em habeas corpus.

Aliás, a segunda decisão do ministro Luiz Fux vai além da já teratológica suspensão autoritária de efeitos de liminar, e desborda inclusive para a antecipação quanto ao risco de eventual concessão de ordem de habeas corpus. De fato, difícil de explicar, observada alguma sistematicidade, alguma repartição de competência, e algum respeito à liberdade decisória de Tribunal de 2ª instância, isso sem mencionar hipóteses de recursos seja no próprio Tribunal gaúcho, seja no STJ, que não foram consideradas haja vista o atalho inusitado para se chegar ao STF.

Mais do que curioso, chamativo, inclusive porque no STJ se sumulou há tempos (Súmula 604) que não cabe nem mesmo mandado de segurança para atribuir efeito suspensivo a recurso criminal interposto pelo Ministério Público. Não se trata de tecnicalidade, e sim de evitar manobras para, às avessas, impedir que se concedam liminares em habeas corpus, castrando-se seus efeitos de cima para baixo (ou, depois, que impeçam até mesmo a conclusão de julgamentos regulares por órgão competente). Simples assim!

A decisão do ministro Luiz Fux, com o devido respeito, é o antiexemplo do que se espera do Supremo Tribunal Federal. Comedimento, observância do sistema do direito, respeito à colegialidade, observância à Constituição. Ela em si, encampa como poucas, um enorme sentimento de frustração, pois vem da caneta do presidente do órgão que deveria ser o primeiro a defender a Constituição Federal, mas está na contramão da inédita previsão constitucional brasileira, que é a de presunção de inocência. É triste, muito triste, testemunhar situação como essa, de tamanho desapreço pelas regras comunitárias idealizadas pelo Poder Constituinte.

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*Renato Stanziola Veira é advogado criminalista, mestre em Direito Constitucional (PUC-SP), mestre e doutor em Processo Penal (USP) e sócio do escritório Kehdi & Vieira Advogados

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