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A MP 966/20 e a responsabilização do agente público por erro grosseiro: a quem interessa a nova regulamentação?

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Por Vivian Ferreira e Fernando Neisser
Atualização:
Vivian Ferreira e Fernando Neisser. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Acaba de ser editada a Medida Provisória nº 966, de 13 de maio de 2020. Em apenas quatro curtos artigos, a norma dispõe sobre a responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia de covid-19. Determina, em síntese, que os agentes públicos somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados com as medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública e combate aos efeitos sociais e econômicos decorrentes da pandemia.

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Não há dúvidas da importância de fornecer segurança jurídica ao gestor público para tomar decisões difíceis em um cenário complexo, sem receio de vir a ser responsabilizado no futuro por ações adotadas de boa-fé. Como vem ressaltando a doutrina de direito administrativo, o risco é inerente às decisões administrativas e decorre da necessidade de responder, às vezes urgentemente, a situações de extrema relevância para atender ao interesse público. Não cabe, portanto, ao Judiciário julgar a posteriori tais decisões sem considerar a realidade em que as decisões foram tomadas, sob pena de criar um estado de paralisia ou o engessamento da gestão pública.

Nesse sentido, a Medida Provisória busca delimitar os contornos do que seria o erro grosseiro e as condições para a sua aferição, tendo em vista os obstáculos e as dificuldades reais do agente, a existência de pareceres técnicos e as circunstâncias práticas que condicionem ou limitem a ação do agente público. Apesar de críticas no sentido de que a medida seria problemática por blindar agentes públicos de responsabilização ao utilizar-se de termos vagos, os reais problemas da nova norma são outros.

A verdade é que a maior parte do texto da medida provisória se limita a repetir, em redação praticamente idêntica, normas já positivadas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lei nº 13.655/18, que alterou o Decreto-Lei nº 4.657/42) e do Decreto nº 9.830/19, que a regulamenta. A situação suscita, desde logo, fundada dúvida quanto à sua urgência e necessidade. A tabela abaixo compara os textos normativos, apontando em itálico os trechos nos quais a medida provisória inovou.

 
 

Como se vê, a medida inova muito pouco no ordenamento jurídico. Tais inovações, no entanto, não parecem inteiramente bem-vindas, fundamentalmente por três razões.

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Em primeiro lugar, por esvaziar a regra que impõe a necessidade de se perquirir acerca do elemento subjetivo para proceder à responsabilização do agente público, tanto no âmbito administrativo quanto no civil. Via de regra, a responsabilização do agente público depende de uma investigação quanto à consciência e a vontade do sujeito de agir de determinada maneira e alcançar determinado objetivo. Ao repetir os critérios que sempre devem ser observados pelos julgadores para responsabilizar os agentes públicos em geral, mas limitando-os ao cenário da pandemia, a medida provisória faz parecer, contrario sensu, que, fora desse contexto, a responsabilização prescindiria da análise de culpa ou dolo.

O receio se reforça por manifestações como a atribuída a ministros do STF, ouvidos sob condição de sigilo pela Folha de S.Paulo, que vislumbrariam inconstitucionalidade na medida ao tornar "praticamente impossível [...] comprovar todos os elementos que caracterizam o que a MP trata como erro grosseiro do gestor público".

Conforme se nota, regras garantistas e vigentes, que já estavam sendo incorporadas ao pensamento jurídico, estão sendo novamente colocadas sob escrutínio, em um cenário em que as percepções estão embaralhadas pela pandemia. Com isso, abre-se espaço para a responsabilização objetiva, quase automática, do agente público e, portanto, para a sua submissão a critérios pouco transparentes adotados pelos órgãos de controle de maneira absolutamente casuísta, em prejuízo da segurança jurídica que se pretende proteger.

Em segundo lugar, a norma é omissa quanto à necessidade de que a avaliação das ações e omissões dos agentes públicos leve em conta eventuais lesões aos direitos dos cidadãos e particulares. De fato, o artigo 22 da LINDB já previa que a conduta dos agentes públicos deve ser avaliada conforme os obstáculos e as dificuldades reais do gestor, sem prejuízo dos direitos dos administrados. A norma é repetida de maneira quase idêntica no artigo 3º da nova Medida Provisória, mas com a relevante omissão do último trecho, sem qualquer explicação plausível para tanto.

É possível que se esteja antevendo os efeitos potencialmente desastrosos de algumas políticas públicas adotadas no enfrentamento da situação emergencial atual, especialmente sobre direitos dos administrados. Busca-se, assim, uma vacina que lhes feche as portas do Judiciário, em clara afronta à inafastabilidade da jurisdição, regra com assento constitucional.

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Por fim, a medida provisória acrescenta às normas em vigor dois outros elementos para delinear a ocorrência, ou não, de erro grave:

(1) a circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência; e

(2) o contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para enfrentamento da COVID-19 e suas consequências, inclusive as econômicas.

A segunda exigência é preocupante, pois revela o uso da norma jurídica para tentar impor uma narrativa política que pressupõe que a defesa da saúde da população e da economia do país seriam mutuamente excludentes e conflitantes, retirando, com isso, a responsabilidade do gestor de buscar conciliar as agendas.

Nesse sentido, a medida parece ter o objetivo de isentar de responsabilidade os gestores públicos que optarem por flexibilizar medidas de isolamento social, contrariando todas as orientações das autoridades de saúde, em razão da alegada necessidade de impedir que empresas quebrem e que trabalhadores autônomos e informais fiquem integralmente sem renda. Como se não fosse atribuição do Poder Executivo, neste momento, formular, defender e implementar iniciativas de transferência de renda, de isenção fiscal e de abertura de linhas de crédito que permitam conciliar as questões de maneira equilibrada. Ou, ao menos, de justificar a sua omissão nesse sentido.

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Como visto, travestida de mera redundância normativa, a medida provisória faz uso de trechos da própria LINDB para reverter os avanços que aquela norma buscou trazer para o ordenamento. Ao insinuar que a responsabilização do agente público em contexto de normalidade não depende de dolo ou erro grosseiro, a norma termina por reduzir a segurança jurídica tão almejada por juristas e economistas. Faz o mesmo ao omitir a necessidade de observância dos direitos dos particulares submetidos às decisões administrativas de combate à pandemia.

E, por fim, parece evidente seu desvio de finalidade para, em uma guerra de narrativas políticas, servir de instrumento para eximir o chefe do Poder Executivo Federal de responsabilidade diante da sua recusa ou incapacidade de realizar uma gestão eficiente e responsável da crise que se abate sobre todos nós.

*Vivian Ferreira, advogada, mestre em Direito e Desenvolvimento pela FGV Direito SP e doutora em Teoria e Filosofia do Direito pela USP

*Fernando Neisser, Mestre e Doutor pela Faculdade de Direito da USP, sócio do escritório Rubens Naves Santos Jr. Advogados e autor do livro Dolo e Culpa na Corrupção Política

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