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A MP 936 e o dilema da CLT: o celetismo não está pronto para um regime de exceção

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Por Daniel Bijos Faidiga
Atualização:
Daniel Bijos Faidiga. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

É fato notório que há alguns anos os brasileiros se dividem, quaisquer que sejam os assuntos, em dois grupos de opiniões opostas. Pouco importa o tema. As pessoas sempre encontram uma forma de adotar um entendimento e execrar o contrário.

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A polarização radical do momento é isolamento vertical ou horizontal. Saúde ou economia. Doença ou fome.

Não entraremos nesta bola dividida, mas vamos reconhecer que um dos poucos pontos de unidade entre os extremos é a necessidade de atuação do poder público não só na área da saúde, como também na área econômica. E, a partir desta premissa, verificar o paradoxo de que nem no consenso é possível haver paz.

Mesmo quem propõe um isolamento vertical (ou distanciamento apenas do grupo de maior risco) sabe que os meios de produção serão afetados e precisam ser amparados. E não apenas pela "mão invisível" do mercado, assim referida por Adam Smith.

Aliás, já que citada a teoria economia clássica, ela também confirma o raciocínio. Basta pensar na classificação original dos meios de produção em: terra, capital e mão-de-obra.

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Atenhamo-nos só à convergência: a força de trabalho. Qualquer que seja o tipo de distanciamento social aplicado (ou mesmo com a elevada perda de vidas projetada pelos raríssimos defensores da contaminação em manada), este meio de produção estará prejudicado. E isto impacta o giro econômico como um todo e impede que o mercado se cure sozinho de modo rápido.

O Estado deve intervir neste aspecto econômico. Isto é inegável.

Para tanto, vale pensarmos em como se dividem os mais de duzentos milhões de brasileiros. Excluídos menores e aposentados inativos, podemos generalizar a categorização com: desempregados, autônomos, empreendedores, funcionários públicos e "celetistas".

Aparentemente, a solução foi simples para a maior parte das categorias. Desempregos e autônomos receberão o chamado "coronavoucher". Discute-se no máximo valor e operacionalização. Empreendedores serão socorridos por linhas de crédito, postergação tributária, etc. Funcionários públicos ficam praticamente imunes à crise, sob o ponto de vista financeiro. Mas os celetistas... ah... os celetistas.

Usamos o termo celetistas propositadamente. Não são só trabalhadores, pois todos os demais o são. Não são empregados, porque fora do conceito legal, existem autônomos e empreendedores empregados, muitas vezes sob a forma de pessoa jurídica. E, mesmo funcionários públicos, não deixam de sê-lo.

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As pessoas sujeitas à CLT formam uma categoria especial que os coloca numa situação peculiar. A proteção constitucional e legal virou-se contra eles.

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Poucos dos que atuam fora da bolha laboral entenderam a primeira Medida Provisória sobre o tema. Suspensão do trabalho para qualificação? Não havia dúvidas de que isso não funcionaria bem perante a opinião pública. Foi afastada por um tweet.

Mas qual então a razão de algo tão esdrúxulo? A resposta, infelizmente, é que se trata de uma das poucas medidas que a lei já previa que poderia ser aplicada sem ser taxada de inconstitucional ou ilegal - o que, para piorar, ocorreria depois de passado o momento caótico. Esse futuro questionamento arrasaria com o relevante princípio da segurança jurídica.

E parece que é o que aconteceu quando, nesta semana, veio ao mundo a nova MP. Apesar de também falar em suspensão, ela foca mais nos caminhos de redução de jornada e de salário. Os grandes veículos de comunicação já contêm informação suficiente para esclarecer a medida, com a explicação das faixas salariais e percentuais de revisão.

O que chama a atenção, na linha de raciocínio apresentada é, mais uma vez, a dificuldade de tratar dos celetistas. Não se passaram algumas horas da publicação para que organizações de magistrados trabalhistas taxassem a medida de inconstitucional. E, cá entre nós, numa interpretação muito simplista, é mesmo. A Constituição não permite redução de salário sem participação sindical.

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Para todos os campos do direito, alguma contemporização vai haver. Locações serão temporariamente revistas, recuperações judiciais sobrestadas, contratos renegociados... Todas as partes destas relações jurídicas serão prejudicadas. Mas a proteção de um determinado grupo de trabalhadores parece absolutamente intangível. O empregador e o governo podem ser prejudicados; os trabalhadores de outras categorias, também; mas os celetistas...

E, note-se, não há qualquer crítica à proteção do empregado contra abusos do empregador. No entanto, ressalvados alguns casos (que sim, devem ser levados à Justiça), é esta a proteção que se busca agora? Na esmagadora maioria dos casos, o empregador está buscando sobreviver à pandemia, como todos.

A MP seria menos inconstitucional se previsse participação sindical inclusive nas faixas mais baixas e mais altas. Mas os sindicatos não têm condição de fazer todos estes acordos em tão pouco tempo. A previsão legal de três hipóteses extremas (25%, 50% ou 70%), numa medida também assinada pelo Ministério da Economia (que hoje abarca o antigo Ministério do Trabalho como Secretaria) não está suprindo esta participação?

Estamos sim diante de um caso em que não dá para ser mais realista que o Rei. Temos que encarar a teoria do possível. Não é possível usar a fórmula pronta do "risco do negócio" e dizer que cabe ao empregador, que por vezes está de portas fechadas contra sua vontade, arcar com toda a conta. Nem dá para idealizar que vivamos na Noruega, com seu magnânimo e inesgotável Fundo Soberano, onde pode governo arcar com toda a conta. Não esqueçamos que o financiamento estatal (arrecadação tributária) está legalmente afastado justamente pelo bem comum.

Uma parcela relevante dos empregadores tem preferido demitir os celetistas a arriscar ações trabalhistas futuras.

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O celetismo não está pronto para um regime de exceção, nem consegue enxergar que, não sendo parte da solução, deve ser parte do problema. É de se esperar, nesse contexto, que uma reforma trabalhista ampla (inclusive do judiciário) venha a ocorrer na nova sociedade que nascerá, ao menos no médio prazo.

Talvez o empregado fique mais protegido.

*Daniel Bijos Faidiga, advogado sócio da LBZ Advocacia

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