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A MP 922 e o desmonte do setor público em tempos de pandemia

Por Rodrigo Torelly e Leandro Madureira
Atualização:
Rodrigo Torelly e Leandro Madureira. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

O governo federal enviou ao Congresso Nacional, no início deste mês, a Medida Provisória (MP) 922, que prevê a contratação de servidores civis aposentados para auxiliarem na diminuição da fila de benefícios do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Atualmente, ela ultrapassa nada menos que 1,3 milhão de pedidos represados. Dentre outras medidas, serão alteradas as regras de contratação de mão de obra por tempo determinado para atender a uma necessidade temporária de excepcional interesse público. Ou seja, a mudança surgiu sob a justificativa de fazer frente ao grave problema de falta de pessoal no INSS.

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A convocação oficial dos servidores estava prevista para o último dia 20 de março no edital e foi suspensa devido à quarentena imposta por diversos Estados para frear o avanço da pandemia no país. Contudo, apesar de ter sido editada antes da crise, a MP também contempla a possibilidade de contratação de mão de obra temporária em decorrência de situações que possam surgir em um cenário de calamidade pública.

A realidade é que o conteúdo da presente medida vai muito além de tal tema. Há diversos pontos presentes na Medida Provisória que revelam que a real intenção do atual governo é de substituir a contratação de servidores efetivos por concurso público.

De imediato, verifica-se que a medida ampliou consideravelmente o rol de atividades que podem ser consideradas de necessidade temporária e de excepcional interesse público para contratação de pessoal, inclusive retirando limitações anteriormente existentes. A medida fez alterações na Lei nº 8.745/93 para atender, por exemplo, a projetos temporários na área industrial ou a encargos temporários de obras e serviços de engenharia.

São citadas contratações preventivas e temporárias com o objetivo de conter situações de grave e iminente risco à sociedade que possam ocasionar incidentes de calamidade pública ou danos e crimes ambientais, humanitários ou à saúde pública. Outro exemplo é a contratação de professores para suprir demandas excepcionais decorrentes de programas e projetos de aperfeiçoamento de médicos na área de Atenção Básica em saúde, em regiões prioritárias para o Sistema Único de Saúde (SUS), assim como contratações relacionadas à assistência a situações de emergência humanitária que ocasionem aumento súbito do ingresso no país.

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No que se trata das formas de contratação, apesar de mantida a necessidade da realização de processo seletivo para o recrutamento de pessoal, a MP aumentou as possibilidades em que ele não será necessário para contratação, que passam a ser: calamidade pública; emergência em saúde pública; emergência e crime ambiental; emergência humanitária; e situações de iminente risco à sociedade. As contratações poderão ser efetivadas apenas em vista de notória capacidade técnica ou científica do profissional, mediante análise do curriculum vitae.

Observa-se que uma grande inovação da MP foi a introduzida na Lei nº 8.745/93, por meio do artigo 3º-A, estabelecendo que a necessidade temporária de excepcional interesse público poderá ser atendida por meio da contratação, por tempo determinado, de servidor aposentado pelo regime próprio de Previdência Social. Nessa modalidade, o recrutamento será por meio de edital de chamamento público, não podendo dele participar servidores aposentados por incapacidade permanente ou com idade igual ou superior a 75 anos. O prazo do contrato, por sua vez, não poderá extrapolar o prazo de dois anos, contadas as prorrogações. Assim, não se aplica a esses contratados o Regime Próprio de Previdência dos Servidores Públicos (RPPS) e nem se garante os mesmos direitos do que os destinados aos detentores de cargo efetivo.

Em relação às atividades exercidas por esses aposentados, elas poderão ser específicas quando se relacionarem àquelas inerentes ao cargo em que se deu a aposentadoria, ou gerais, quando passíveis de serem exercidas por servidores aposentados de qualquer carreira ou cargo. A retribuição pecuniária não será incorporada aos proventos de aposentadoria, não servirá de base de cálculo para benefícios ou vantagens e nem estará sujeita à contribuição previdenciária, limitando-se ao pagamento de diárias, auxílio-transporte e auxílio-alimentação.

Já em relação ao prazo dos contratos, foi estabelecido um novo limite de oito anos para a hipótese de pesquisa e desenvolvimento de produtos e serviços, com admissão de pesquisador ou de técnico com formação em área tecnológica de nível intermediário ou superior nacional ou estrangeiro.

Por fim, a Medida Provisória também promoveu alterações na Lei nº 10.820/03 para autorizar a terceirização da prestação dos serviços de operacionalização de consignações pelo INSS, por meio de licitação ou contratação direta, por dispensa de licitação quando se tratar de ente público.

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Sem olvidar-se que a contratação por tempo determinado encontra seu elemento fundante no artigo 37, IX, da Constituição, que estabelece a necessidade de lei para regular os casos de contratação por tempo determinado e para atender à necessidade temporária de excepcional interesse público, é perceptível a extrapolação dessa finalidade com as alterações promovidas pela MP 992/20.

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A realidade é que a necessidade temporária de excepcional interesse deve ser entendida como aquela requerida em situações muito importantes que demandem atuação pública. Entretanto, pela transitoriedade, não deveria requerer a criação de cargo público, ou, se assim requerer, pela urgente necessidade, contratar-se temporariamente até que os cargos sejam criados e o respectivo concurso público seja realizado.

Conforme analisado, além do aumento das possibilidades de contratação nessa modalidade, que não se encontram inseridas no conceito trazido pela Constituição Federal, foram também retiradas limitações anteriormente existentes, que tornam o espectro de aplicação da Lei nº 8.745/93, infinitamente maior e que materializa uma burla a regra do concurso público estabelecida no art. 37, II, da Constituição.

A Medida Provisória ainda traz consigo termos vagos e imprecisos em diversos dispositivos, que certamente suscitarão dúvidas acerca do alcance desse tipo de contratação, ampliando o debate acerca de sua inconstitucionalidade. Exemplo disso é a disposição contida no artigo 2º, § 4º, da Lei nº 8.745/93, que transfere ao Poder Executivo a prerrogativa de definir quais cargos serão declarados obsoletos.

O ponto principal do debate é que a contratação de servidores efetivos por concurso público permite o acesso a cargo público de modo amplo e democrático, ao contrário da contratação de trabalhadores temporários, cujas regras de seleção e dispensa não são rígidas e potencializam os riscos de favorecimento pessoal e indicação políticas.

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É evidente que a situação atual de pandemia ocasionada pelo coronavírus, que, por sinal, parece não receber a devida atenção do governo, especialmente quanto às orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), poderia justificar a edição da MP 922.

Contudo, a exposição de motivos da Medida Provisória acaba por não fazer qualquer menção ao evento epidemiológico ou ao coronavírus. A atual crise deveria ser enfrentada pelo Governo Federal ao invés de atender à mera intenção em promover o desmonte dos serviços públicos.

*Rodrigo Torelly é advogado especialista em Direito do Trabalho e Sindical e sócio do escritório Mauro Menezes & Advogados

*Leandro Madureira é advogado especialista em Direito Previdenciário e sócio do escritório Mauro Menezes & Advogados

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