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A mediação da recuperação judicial: três grandes desafios e o 'misoneísmo'

Com as alterações promovidas pela Lei 14.112/2020, a mediação passa a ser verdadeiramente incentivada, tanto na fase pré-processual, como em qualquer etapa do processo de recuperação judicial, recuperação extrajudicial ou falência. É o que dispõe o art. 20-A e seguintes da Lei 11.101/2005.

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Por Arthur Mendes Lobo , Regiane França Liblik e Daiane Rompava
Atualização:

Arthur Mendes Lobo, Regiane França Liblik, Daiane Rompava. Foto: Divulgação.

Os novos dispositivos legais estão em consonância com a Política Judiciária Nacional de Tratamento Adequado de Conflitos. Assim, propagam-se os métodos consensuais de solução de conflitos nos conflitos empresariais. Diga-se de passagem, tais métodos estão alinhados com a Recomendação nº 58/2019 do Conselho Nacional de Justiça, que incentiva a sua utilização nos processos falimentares e de recuperação judicial e com a Recomendação nº 71/2020, que prevê a criação de Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania para conflitos empresariais.

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O número de empresas em situação de insolvência aumentou substancialmente nos últimos anos no mercado brasileiro. O cenário foi intensificado pelas regras de isolamento social e fechamento do comércio decorrentes da pandemia da SARS Covid-19.  Basta ver o número de pedidos de recuperação judicial para se ter uma ideia da urgente necessidade de soluções estratégicas para a superação das mais diversas crises financeiras. Daí a importância da busca por outras formas de acesso à justiça.

A Lei 14.112/2020 autoriza a instauração da mediação antes mesmo do pedido de recuperação judicial - ou seja, em caráter antecedente - ou ao longo do processo, mesmo quando a discussão estiver em segundo grau ou perante as Cortes Superiores. O art. 20-B dispõe sobre as hipóteses em que a utilização dessa via será admitida, vedando-a expressamente quando tiver por objeto "a natureza jurídica e a classificação de créditos, bem como sobre critérios de votação em assembleia-geral de credores".

A mediação tem se provado um meio eficaz de solução de diversas questões dentro dos processos de recuperação, já que pode viabilizar, se houver respeito à autonomia da vontade e aos requisitos legais, que a devedora mantenha bom fluxo de caixa a possibilitar o soerguimento da sua atividade.

Entretanto, é necessário refletirmos sobre três pontos que podem dar ensejo a controvérsias na interpretação da lei, já que o texto da norma não faz expressa menção sobre essas matérias, o que tem sido alvo de inúmeros debates na comunidade jurídica.

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O primeiro deles diz respeito à competência. O art. 20-C estabelece que o acordo realizado dentro da mediação deverá ser homologado pelo juiz competente, conforme previsto no art. 3º da mesma normativa. Trata-se do juízo que defere o processamento da recuperação, homologa o plano ou decreta a falência. Não se questiona quando a mediação é realizada durante o processamento da recuperação judicial ou antes da recuperação extrajudicial ou mesmo antes da falência.

A dificuldade interpretativa ocorre quando a mediação se dá na fase pré-processual: qual seria o juízo competente nos casos em que ela é realizada antes dos referidos processos? Parece-nos que não se pode exigir que credor e devedor sejam obrigados a solicitar a homologação de um juízo recuperacional, nem de um juízo falimentar, pois ele sequer está prevento Em outras palavras, se não há processo concursal (recuperação judicial, extrajudicial ou falência), o acordo na fase pré-processual pode ser homologado por qualquer juízo onde tramita a execução ou ação de cobrança, e não necessariamente pelo juízo da vara de recuperação judicial e falências da comarca onde se situa o principal estabelecimento do devedor (art. 3º da Lei 11.101/05).

Significa dizer que a prevalecer a interpretação de que qualquer homologação de acordo, mesmo o ocorrido na fase pré-processual, deveria se dar no juízo previsto no art. 3º da Lei 11.101/05, tal exigência além de não fazer sentido diante da inexistência de juízo prevento, poderia desestimular a negociação, visto que a distância territorial entre juízos da execução (foro de eleição dos contratos) e o juízo recuperacional (local do principal estabelecimento do devedor) pode gerar dificuldades e custos desnecessários. Dessa maneira, cremos que a homologação de eventual acordo na fase pré-processual deve ser declarada pelo juízo da execução ou pelo juízo previsto no contrato celebrado entre as partes (foro de eleição).

A segunda preocupação se refere à possível violação ao princípio par conditio creditorum, utilizado quando da apresentação de objeções ao plano de recuperação judicial. Esta norma jurídica assegura que aos credores de uma mesma classe seja dado idêntico tratamento no que tange às condições de pagamento.

Embora o art. 20-B da Lei 11.101/05, introduzido pela Lei 14.112/2020, não proíba expressamente a mediação para redefinir o valor do crédito, bem como as condições e prazos de pagamento, é importante que a devedora respeite a isonomia entre credores de uma mesma classe, para não violar a par conditio creditorum. É exatamente por isso que a lei exige a homologação do acordo por um juiz de direito, ou seja, para que o magistrado verifique se haverá quebra do dever de tratamento igualitário, bem como se o acordo implicará em alguma sanção criminal, como, por exemplo, a prevista no art. 172 da Lei 11.101/05, segundo o qual:

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"Art. 172. Praticar, antes ou depois da sentença que decretar a falência, conceder a recuperação judicial ou homologar plano de recuperação extrajudicial, ato de disposição ou oneração patrimonial ou gerador de obrigação, destinado a favorecer um ou mais credores em prejuízo dos demais:

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Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre o credor que, em conluio, possa beneficiar-se de ato previsto no caput deste artigo."

É inegável que o princípio da igualdade entre credores deve ser respeitado em sua integralidade, compatibilizando-se o procedimento de mediação com os requisitos da Recuperação Judicial. Caso a igualdade não seja respeitada pelo devedor, a assembleia geral de credores e, ainda, o comitê de credores podem apontar essa irregularidade ao magistrado, que terá fundamento para declarar invalidade do acordo realizado sem observância à isonomia. A invalidação é possível e necessária, notadamente quando a desigualdade de tratamento causar prejuízo a outros credores de mesma classe, já que, nesta hipótese, eles acabam sendo preteridos das mesmas condições de recebimento de seu crédito.

O último ponto a que se deve dar atenção diz respeito ao cotejo da confidencialidade exigida na mediação com os princípios de transparência e publicidade dos atos da recuperação judicial. A norma não pode dar guarida a negócios escusos, realizados em prejuízo de terceiros, nem tampouco à má-fé das partes interessadas na mediação.

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É necessária a coexistência desses princípios (transparência/confidencialidade), pois, embora se deva guardar o sigilo quanto ao teor do diálogo desenvolvido nas sessões de mediação, os termos dos acordos, quando homologados, serão levados ao processo de recuperação judicial, garantindo-se a ampla divulgação. Desse modo, qualquer credor que se sinta prejudicado por uma fraude, tratamento não isonômico ou simulação para ocultação de bens do devedor, poderá se insurgir, pedir a anulação da avença ou ajuizar as medidas cabíveis, notadamente as cíveis e criminais previstas nos art. 19 e art. 172 da Lei 11.101/05.

Estimula-se a mediação nos processos falimentares com o fim de diminuir a assimetria entre as partes, reduzir o tempo do processo e a quantidade de recursos e facilitar a construção de soluções que gerem mútuos benefícios e que sejam capazes de restaurar as relações corrompidas pelo conflito. E as negociações assistidas devem observar a boa-fé e as boas práticas, absolutamente necessárias para que a sociedade se reorganize e para que possamos superar a crise mundial que se alastra.

A escolha pela expressão "misoneísmo", no título dessa nossa breve reflexão, não foi randômica. Carl Jung destacou que havia, entre os povos primitivos, um medo extremo do novo, capaz de fazê-los reagir como animais selvagens diante do desconhecido. E Jung afirmou que esse mesmo fenômeno pode ser verificado entre os homens civilizados diante de uma nova ideia, fazendo com que se criem barreiras psicológicas de grande resistência ao abalo promovido pela inovação.

Precisamos enfrentar os receios com a mediação e demais vias consensuais de solução de conflito, especialmente no que diz respeito à sua utilização nos meios empresariais, de modo a que se dê efetividade e credibilidade aos processos de recuperação judicial no Brasil. A mediação deve ser vista como solução adequada ao alcance do escopo da recuperação judicial, que é o soerguimento das empresas, e não como uma ameaça aos demais credores.

 

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*Arthur Mendes Lobo, professor de Direito Empresarial da UFPR. Doutor em Direito pela PUC-SP. Advogado Sócio do Escritório Wambier, Yamasaki, Bevervanço e Lobo Advocacia e Consultoria Jurídica.

*Regiane França Liblik, Mediadora Judicial. Professora de Teoria da Negociação no Programa de Pós-Graduação do Centro Universitário Dom Bosco.  Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra (FDUC). Advogada no escritório Wambier, Yamasaki, Bevervanço, Lima & Lobo Advocacia e Consultoria Jurídica.

*Daiane Rompava, bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Associada no Escritório Wambier, Yamasaki, Bevervanço e Lobo Advocacia e Consultoria Jurídica.

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