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A magistratura do Trabalho e os desafios entre legislação e jurisdição

Por Noemia Porto e Viviane Leite
Atualização:
Noemia Porto e Viviane Leite. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

O dilema sobre o papel do Estado quando se trata do pacto social e de um desenvolvimento sustentável e inclusivo parece mais latente nos tempos atuais. O Decreto-legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, reconhece o estado de calamidade pública, instituindo comissão mista do Congresso Nacional com o objetivo "de acompanhar a situação fiscal e a execução orçamentária e financeira das medidas relacionadas à emergência de saúde pública de importância internacional relacionada ao coronavírus (covid-19)". Mesmo antes da pandemia, o campo especializado do trabalho sempre esteve marcado pela singularidade do regime da pluralidade e do diálogo entre fontes normativas.

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Num primeiro plano, há a centralidade dos direitos fundamentais, como inovação constitucional desde 1988, representada pelo seu Título II. Assim, no campo do trabalho, qualquer legislação que atenda a livre iniciativa deve conjugá-la, necessariamente, com o valor social do trabalho, o que desafia uma postura interpretativa permanente. O diferencial trabalhista na presença marcante e valorizada de regras provindas de fonte privada, em contraposição à clássica fonte estatal, também é ponto de destaque. De fato, não se nega a importância das normas de produção autônoma como autodisciplinamento das condições de vida e de trabalho pelos próprios interessados. Há, em suma, válida e legítima concorrência entre o Direito do Estado e o dos grupos sociais. Além disso, o chamado "direito comum" é fonte subsidiária para o Direito do Trabalho (art. 8º da CLT). Tudo isso orientado pelo princípio da indisponibilidade dos direitos trabalhistas, que vigora normativamente incidindo sobre o campo das relações de trabalho, assim como o do primado da dignidade da pessoa trabalhadora.

Esse, que é um panorama mais geral, recebeu colorido especial nos últimos anos. Depois de longa tramitação no Congresso Nacional, sobrevieram o Código Civil de 2002 e o Código de Processo Civil de 2015. A "Reforma Trabalhista", perpetrada com a edição da Lei 13.367/2017, que alterou de forma drástica o Direito material e Processual do trabalho, teve uma tramitação recorde no Congresso Nacional, reforma esta que modificou inúmeros dispositivos da CLT e demais legislações ordinárias. Todas essas mudanças desafiam o crivo da constitucionalidade e da compatibilidade e observância, também, das normas internacionais do trabalho.

No entanto, em que pese a abrangência de todas as mudanças perpetradas, o movimento parece não cessar, considerando o número crescente de projetos legislativos, em tramitação, buscando a alteração de normas que impactam o mundo do trabalho, e muitos deles sem nenhum compromisso com a expansão ou incremento das previsões da Constituição da República.

No ano de 2018 foram propostos 70 Projetos de Lei na Câmara dos Deputados e 40 Projetos de Lei do Senado no Senado Federal. Já em 2019 foram propostos 168 Projetos de Lei na Câmara dos Deputados e 56 Projetos de Lei no Senado Federal e editadas 3 Medidas Provisórias. Nos primeiros quatro meses de 2020 foram propostos 85 Projetos de Lei na Câmara dos Deputados e editadas 3 Medidas Provisórias. Já em relação as normas referentes ao enfrentamento da Pandemia da Covid19, até o momento, já foram propostos mais de 150 Projetos de Lei tratando de normas referentes aos contratos de trabalho e editadas 4 Medidas Provisórias. Profusão de medidas legislativas nem sempre representam indicativos de segurança jurídica ou de estabilidade das relações contratuais, muito pelo contrário.

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Esses dados demonstram o alto nível de exigência endereçado à magistratura especializada do trabalho. Isso não ocorre com nenhum outro ramo do Judiciário porque não se trata de mera atualização ou de necessidade permanente de aperfeiçoamento legislativo. A profusão de propostas e de textos aprovados sempre exigirão o contexto de interpretação normativa. A centralidade do trabalho na vida das pessoas parece se traduzir na centralidade das atenções legislativas sobre o mundo do trabalho, e nem sempre no sentido de incremento da proteção social.

Magistrados e magistradas do trabalho veem-se na permanente obrigação de readequação, de modificação dos seus julgamentos, de acordo com as novas legislações aprovadas pelo Congresso Nacional, e, até mesmo, de definição de argumentos jurídicos para a não aplicação de determinados dispositivos, seja pelo controle difuso de constitucionalidade, seja pelas violações perpetradas a normas internacionais (como é o caso recorrente das Convenções nº 98 e 155 da OIT). Entre legislação e jurisdição, o fluxo excessivo indica que o que está em jogo é o próprio avanço dos direitos fundamentais no campo econômico-social-trabalhista que o Texto de 1988 representou.

Além desses desafios, os retornos pontuais, de tempos em tempos, de discursos públicos contra o Poder Judiciário trabalhista desnudam um ambiente de incerteza e de insegurança institucional, não apenas para os integrantes do sistema de justiça laboral, mas, também, para os próprios cidadãos. A Justiça do Trabalho integra o Poder Judiciário da União, com a delimitação da sua competência, conforme disposição contida nos arts. 111 e 114 da Constituição. Indiscutível a sua produtividade e resposta aos jurisdicionados, conforme números divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), impondo a conclusão de que as críticas que lhe são dirigidas se embasam na sua produtividade e não na sua inércia.

Em tempos de pandemia, o Judiciário trabalhista, mais uma vez, demonstra a sua efetividade funcionando remotamente. A divulgação da produtividade dos seus magistrados e magistradas encontra-se nos portais dos Tribunais Regionais, com registro de que foram destinados mais de R$ 200 milhões obtidos por acordos extrajudiciais, decisões e ações coletivas e Termos de Ajustes de Conduta para ações de combate ao coronavírus e com a finalidade de atendimento das pessoas em faixas de vulnerabilidade. A Escola Nacional da Magistratura do Trabalho - ENAMAT e as Escolas Regionais têm disponibilizados diversos cursos à distância, capacitando os magistrados e as magistradas, auxiliando na compreensão e aplicação dessas novas legislações que seguem em ritmo alucinante.

A era democrática inaugurada em 1988 trouxe para a cena pública a questão do trabalho como uma questão de direitos fundamentais. Isso não seria apenas um dado; teria que ser um construto. Como era esperado, e se intensifica de tempos em tempos, seguem as disputas políticas e jurídicas em torno do direito ao trabalho como direito fundamental. E, nesta toada, no epicentro do sistema do direito, encontra-se a presença de uma magistratura especializada que tem se mostrado apta a dar as respostas constitucionais para esses tempos.

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*Noemia Porto, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho; Viviane Leite, diretora de Assuntos Legislativos da Anamatra

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