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A LGPD entre Scylla e Charybde

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Por Fernando Santiago
Atualização:
Fernando Santiago. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Em seu retorno vitorioso da Guerra de Troia, Ulysses sonhava em retornar rapidamente aos braços de Penélope em Itaque. Contudo, a ira de Poseidon fez-lhe errar pelos oceanos durante 10 anos, enfrentando perigos cujas características deram origem ao qualificativo "homérico", utilizado até os dias de hoje. Para atravessar o Estreito de Messina (que separa a atual Sicília da Calábria, na Itália) Ulysses deveria evitar, de um lado, Scylla, uma ninfa transformada em monstro marinho por Cirse, que habitava um rochedo situado em uma extremidade, e do outro lado, Charybde, condenada por Zeus a engolir três vezes ao dia quantidades imensas de água, incluindo barcos, marinheiros e peixes.

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Qualquer semelhança entre a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), e Ulysses, o herói de Odisseia, primeiro clássico da literatura ocidental do século VIII antes de Cristo, é mera coincidência. Após um processo espetacular de aprovação por unanimidade na Câmara e no Senado, um feito "homérico" em nossa jovem República, a viagem da LGPD até a sua entrada em vigor é marcada por aventuras inimagináveis por seus companheiros de campanha no Congresso.

Inicialmente, a MP 869/2018, convertida na Lei 13.853/2019, postergou a sua entrada em vigor por 6 meses complementares. O texto original da Lei previa a sua entrada em vigor em fevereiro de 2020 (sem contar as contribuições dos vetos presidenciais para a aventura). Em seguida, o texto unanimemente festejado foi percebido, por parte do empresariado, como um texto além do seu tempo. A intenção era boa, mas não para agora...há outras preocupações a administrar antes da entrada em vigor dessa lei...

Um movimento discreto surgiu defendendo a postergação (de novo?) da entrada em vigor da LGPD por dois anos suplementares (Projeto de Lei 5.762/2019 do deputado Carlos Bezerra (MDB/MT). Vários outros surgiram desde então, com focos distintos, mas fundados no mesmo alicerce, a saber: "a LGPD não pode entrar em vigor, tal como se encontra, em agosto de 2020. Não estamos preparados."

Dado à intensa atividade legislativa sobre o tema, nunca escrevi um artigo que tenha se tornado obsoleto com tanta velocidade. Ainda nesta terça-feira, 31, defendi a ideia da suspensão, por 12 meses, da aplicação das penalidades decorrentes do descumprimento da LGPD, veiculada no Projeto de Lei 1164, de 2020, proposto em 30/03/2020 pelo senador Álvaro Dias (Podemos/PR).

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Contudo, algumas horas depois me deparei com o Projeto de Lei 1179, também de 30/3/2020, que criava o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado (RJET), de autoria do meu saudoso professor de Direito Administrativo na UFMG, atualmente senador Antônio Anastasia (PSD/MG), uma pessoa que marcou minha vida pela velocidade, pertinência e acurácia do seu poderoso cérebro. O Projeto de Lei em questão cria um verdadeiro regime jurídico de exceção durante a pandemia do Coronavírus e, em seu bojo... propõe a prorrogação da entrada em vigor da LGPD por 12 meses suplementares (36 meses a partir da publicação da LGPD, segundo o art. 25 do projeto de lei sub examen).

Assim como Ulysses, que inocentemente sonhava com os braços de Penélope, a LGPD encontra-se condenada (por Poseidon?) a errar por um período incerto nos mares da política brasileira. Ao atravessar o estreito que a separa da sua entrada em vigor ela deve evitar, por um lado, o legítimo receio do empresariado brasileiro em relação às severas sanções que ela pode dar origem e, por outro, o reflexo do Congresso - caixa de ressonância da sociedade brasileira - de postergar tout court o seu legado em nome de uma crise - por certo relevante, mas seguramente temporária, por prazo incerto.

Defendo, em que pese o a irrelevância desse fato, o entendimento de que melhor vale prorrogar a aplicação das penalidades inerentes ao descumprimento da LGPD do que a aplicação da LGPD como um todo. Perderíamos um tempo precioso na implementação de uma cultura de proteção de dados pessoais que - sabemos - consome mais tempo que uma vacatio legis imposta pela letra fria da lei.

Quanto ao destino final reservado a esse tema, confesso que só sei que nada sei. Nunca a literatura clássica ocidental foi tão atual quanto nos tempos presentes.

*Fernando Santiago, sócio-fundador do escritório Chenut Oliveira Santiago Advogados. Inscrito nas ordens profissionais de Paris, Lisboa, São Paulo, é Data Protection Officer (DPO), com experiência junto ao regulador francês CNIL - Commission Nationale de l'Informatique et des Libertés. É titular do Diplôme d'Université Data Protection Officer (DPO) da Université de Paris II Panthéon-Assas. Indicado pela Câmara dos Deputados para compor o Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade

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