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A legitimidade da contravenção penal de jogos de azar: no horizonte, o veredito do STF

Por Amanda Bessoni Boudoux Salgado e Rodrigo Antonio Serafim
Atualização:
Amanda Bessoni Boudoux Salgado e Rodrigo Antonio Serafim. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

No dia 7 de abril, o Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento do Recurso Extraordinário n° 966177/RS, que discute se foi recepcionada pela Constituição de 1988 a tipificação da exploração, estabelecimento ou participação em jogos de azar como contravenção penal. Em 2016, a Corte Constitucional decidiu que o tema é de repercussão geral, ou seja, possui relevância econômica, política, social e jurídica suficiente para o cabimento do recurso extraordinário, transcendendo os interesses individuais das partes.

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No caso concreto, o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul manifestou inconformismo diante de decisão da Turma Recursal Criminal dos Juizados Especiais Criminais daquele estado, que concluiu ser atípica a conduta prevista no art. 50 do Decreto-Lei n° 3.688/1941 (Lei de Contravenções Penais). Para a corte gaúcha, o dispositivo que pune o estabelecimento ou exploração de jogo de azar em lugar público ou acessível ao público é incompatível com a principiologia constitucional vigente, contrastando com as liberdades individuais garantidas pelo texto de 1988. A aplicabilidade do dispositivo legal que define a contravenção, aliás, já foi afastada outras diversas vezes pelo mesmo órgão julgador.

De fato, a questão ultrapassa os limites da causa subjetiva, provocando o Supremo Tribunal Federal ao debate sobre temas subjacentes à prática do jogo de azar em si: está em pauta a legitimidade de uma sanção penal que expressamente se sustenta na tutela dos "costumes"[1] compatíveis com a década de 1940, conforme o título do capítulo em que se insere na Lei de Contravenções Penais ("Das contravenções relativas à polícia de costumes").

Não raro, os comentários sobre o art. 50 da LCP vêm acompanhados de justificativas que se dividem em dois argumentos principais: (I) a previsão legal atende à necessidade de proteger o "explorado" contra o explorador de jogos de azar e a falta de lisura nos resultados, dado que a prática leva ao vício e à ruína do indivíduo nos âmbitos familiar, laboral e econômico; (II) circundam a exploração não estatal dos jogos de azar uma série de delitos considerados gravíssimos, como a lavagem de dinheiro e a criminalidade organizada.

A primeira ideia, da vulnerabilidade à exploração, esconde mais uma referência à proteção dos bons costumes, além de se chocar com o direito à autodeterminação. Sendo esta a finalidade do tipo de contravenção, resta discutir se, à luz da Constituição de 1988, pode ser afirmada a existência de legitimidade penal. Se adotássemos a perspectiva do dano a outrem, numa alusão ao harm principle de John Stuart Mill, dificilmente sobreviveria o art. 50 da LCP, pois a prática não lesiona diretamente terceiros. O dano causado a si mesmo, em cenários de jogo patológico, demanda soluções de saúde pública e não é capaz de legitimar a proibição de natureza penal.

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Melhor resultado não traz o aporte germânico tradicional do bem jurídico. Embora seja frequente a crítica da desmaterialização dos bens jurídicos e de sua utilização como justificativa para a ampliação da tutela penal, mais do que critério limitador do poder punitivo, há muito já se afirma a incompatibilidade da mera ilicitude moral com as disposições de caráter penal. Nas palavras de Juarez Tavares, "a existência de um bem jurídico e a demonstração de sua efetiva lesão ou colocação concreta em perigo constituem, assim, pressupostos indeclináveis do injusto penal."[2]

No que se refere à proteção da "moral" e dos "bons costumes", é importante lembrar os rumos tomados pela legislação penal nos crimes sexuais, cuja redação original refletia as concepções morais da sociedade brasileira na década de 1940, a ponto de restringir a aplicação do tipo de posse sexual mediante fraude aos casos em que a vítima fosse mulher "honesta". A propósito, somente com a Lei n° 12.015/2009 é que se alterou a denominação do Título VI do Código Penal de "crimes contra os costumes" para "crimes contra a dignidade sexual". Nesse exemplo, ainda que fosse declarada a pretensão de tutelar uma determinada moral sexual, não há dúvidas da existência de um bem jurídico legítimo a ser protegido pela legislação penal, pois as condutas descritas efetivamente lesionam a autodeterminação sexual ou a liberdade sexual, a depender da hipótese.

A figura da contravenção penal de jogos de azar, por outro lado, não sobrevive a essa análise. O argumento da tutela dos costumes e da reprovabilidade do lucro fácil é inválido, pois estritamente moralista. Tanto obedece às percepções morais da sociedade, segundo o contexto momentâneo, que os bingos já foram expressamente autorizados por lei, mesmo configurando "jogo de azar", nos termos do art. 50 da LCP. A Lei n° 8.672, de 1993, conhecida como "Lei Zico", permitiu a modalidade com o fim de angariar recursos para o fomento do desporto. Alguns anos depois, a "Lei Pelé" (Lei n° 9.615/1998) passou a autorizar os jogos de bingo em todo o território nacional, mediante o cumprimento de certas condições. No entanto, veio a Lei n° 9.981/2000 e revogou os dispositivos da lei anterior que continham a permissão de funcionamento dos bingos.[3]

Em segundo lugar, nem mesmo a afirmação de que a prática de jogos de azar normalmente se associa a delitos mais graves, como a lavagem de dinheiro e a criminalidade organizada, traz critério de lesividade suficiente para se considerar legítima a punição penal, sob a influência das liberdades individuais elencadas pela Constituição. Isso porque a possibilidade de "captura" dos estabelecimentos de jogos de azar por integrantes de organizações criminosas não os torna presumidamente nocivos. Não há nada que vincule automaticamente as práticas de jogos a determinadas espécies de criminalidade, e a despenalização da conduta prevista no art. 50 da LCP não tornaria mais fácil o cometimento daqueles delitos. Ou seja, não há relação de acessoriedade entre tais atividades ilícitas e o jogo, o que frustra ainda mais a busca pela lesão a um bem jurídico que torne legítima a previsão legal (diferente do que ocorre, por exemplo, na própria lavagem de dinheiro, que se relaciona ao crime antecedente, mas tutela bem jurídico distinto).

Em síntese, não parece haver construção interpretativa que considere recepcionada pela Constituição de 1988 a referida contravenção penal sem fazer uso de especulações sobre externalidades negativas. A ausência de lesividade autônoma e suficiente para a intervenção penal é mais que o bastante para se contestar a tipicidade material da conduta. Eventuais razões práticas e sociológicas podem até recomendar a caracterização da exploração de jogos de azar como ilícito administrativo, mas, a nosso ver, os fundamentos que hoje se apresentam ao STF não lhe conferem legitimidade como categoria penal. Ainda assim, vale dizer que qualquer iniciativa de legalização dos jogos de azar no Brasil, a exemplo do Projeto de Lei do Senado n° 186/2014, não deve ignorar o questionamento da posição do setor no sistema normativo de prevenção da lavagem de dinheiro.

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NOTAS:

[1] MONTEIRO, Marcelo Valdir. In: SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo (coord.). Comentários à Lei de Contravenções Penais. São Paulo: Quartier Latin, 2006. p. 237.

[2] TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 4. ed. São Paulo: Tirant lo blanch, 2019, p. 213.

[3] Vale destacar que, antes de sua entrada em vigor, foi editada a Medida Provisória n° 2216/2001, que alterou a redação da Lei Pelé para determinar a exploração dos jogos de bingo pela Caixa Econômica Federal.

*Amanda Bessoni Boudoux Salgado, sócia de Alamiro Velludo Salvador Netto Advogados Associados. Doutoranda em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

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*Rodrigo Antonio Serafim, sócio de Alamiro Velludo Salvador Netto Advogados Associados. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

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