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A Justiça e o déficit ambiental do governo Bolsonaro

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Por Carlos Bocuhy
Atualização:
Carlos Bocuhy. FOTO: DIVULGAÇÃO  

O governo federal foi instado a apresentar ao Judiciário informações sobre o desmatamento da Amazônia, fruto de ação consistente protagonizada pelo Legislativo federal. A ministra Carmem Lúcia, do STF, determinou que sejam apresentadas as ações governamentais de combate ao desmatamento.

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Este processo não pode prescindir da apuração da condição pregressa, de uma realidade devastadora que decorre da incúria do governo federal. São fatos de conhecimento público os discursos irresponsáveis e as intenções confessas sobre ir "passando a boiada".

A paralisação do Fundo Amazônia, a ineficácia da fiscalização com a fragilização dos meios operacionais do Ibama, a redução das multas e meios para sua execução, o afrouxamento das normas que regram a exportação de madeira e outras disfunções produziram um sentimento de impunidade e o crescente aumento do índice de destruição ambiental, favorecendo a extração ilegal de madeira, a lavra ambiciosa e a ampliação silvipastoril criminosa. Este estado de coisas foi amplamente documentado pela imprensa e é de conhecimento público.

O que se revela, no discurso e nas ações do governo, é uma lacuna na eficácia e na eficiência da gestão pública ambiental, o que traz duas possibilidades que se retroalimentam: omissão por incompetência e falta de percepção ambiental e, de outro lado, fortes indícios do que parece ser uma profunda má-fé, com a velha política do "toma lá, dá cá", que beneficia setores que apoiam o atual governo.

Essas possibilidades são sinérgicas e podem levar à responsabilização do governo, conforme já representaram à Procuradoria Geral da República centenas de entidades ambientais e o próprio Ministério Público Federal, em defesa dos princípios essenciais da administração pública: moralidade, impessoalidade, eficiência administrativa e legalidade.

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A tomada das providências legais já era visível em agosto de 2019. Entidades ambientais, de todo o Brasil, encaminharam à Procuradoria Geral da República solicitação para que procedesse à apuração sobre o desmonte do Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama), que inclui o Ibama, ressaltando a amplitude e a riqueza dos bens ambientais a serem protegidos em território nacional: o Brasil, com 8,5 milhões de km², abriga mais de 20% do número total de espécies vivas da Terra, em ecossistemas diversos, ressaltando-se a Floresta Amazônica, maior floresta tropical úmida do planeta.

Ao final de 2019, a 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, diante das declarações sobre a intenção de alterações na normativa ambiental anunciadas pelo ministro de Meio Ambiente Ricardo Salles em reunião ministerial, subscreveu representação onde cita uma declaração de voto do ministro Roberto Barroso: "Configura erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação ao direito à vida, à saúde ou ao meio ambiente equilibrado, por inobservância das normas e critérios científicos e técnicos e aos princípios da precaução e da prevenção"

Neste processo de reação à devastação ambiental não faltaram provocações legais da sociedade civil, do Legislativo federal, da imprensa, da opinião pública internacional, de setores progressistas da área econômica e do conjunto de ex-ministros de Meio Ambiente, o que demonstrou o elevado índice de percepção social sobre os absurdos que vinham ocorrendo.

É inegável o fato de que, nos tempos atuais, a consciência pública internacional tem sido movida pela percepção sobre os limites da natureza para a manutenção de suas funções, especialmente dentro dos efeitos palpáveis deste início de Antropoceno. A intensidade da pressão humana sobre o estado do planeta, especialmente na questão climática, exige dos organismos supragovernamentais e dos governantes de plantão ações mais efetivas, abominando a visão predatória, que se denota na atual administração federal brasileira, que vem contrariando os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil na proteção climática e da biodiversidade.

As práticas de predação, enraizadas em concepções limitadas sobre o que é desenvolvimento, podem ser encontradas no discurso e nas práticas estreitas protagonizadas pelo governo de Jair Bolsonaro, que ao assumir o poder jurou cumprir a Constituição brasileira. Apesar disso, assistimos a um desfile de afirmativas alienadas e insólitas como "eu acho", ou "eu não dou bola", sem mais justificativas ou motivações plausíveis, que pretendem ser acobertadas em brechas da discricionariedade governamental, como se fossem mero direito de opinião.

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Ora, é plenamente conhecido o fato de que os limites da discricionariedade não dão guarida à omissão e às práticas menores que possam atingir os bens indisponíveis de interesse coletivo. Enquanto a realidade não nos deixa outro caminho a não ser o do buscar, de forma determinada, um modelo de sustentabilidade para o território brasileiro, é incompreensível que um governo possa prescindir da percepção sobre questões basilares referentes à natureza. O governo Bolsonaro não tem demonstrado essa percepção mínima, nem no que diz nem no que faz, provocando um enorme déficit ambiental. Deseducar, eis a questão.

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A exceção aparente recai sobre a tentativa de ponderação do vice-presidente Hamilton Mourão, que cumpre a impossível tarefa de converter fatos, apresentando um extenso relatório burocrático que não conseguiu conter o aumento da devastação de 9,5% da Amazônia no último ano. A pérola da argumentação é a afirmativa de que o Brasil preservou muito, pois ainda resta grande parte da vegetação amazônica. É como dizer que a criminalidade é baixa pois ainda restam mais de 200 milhões de brasileiros.

A realidade demonstrada pelos satélites e dados oficiais comprovam a ineficácia governamental, o que leva a região amazônica a um estágio mais próximo do ponto de inflexão, do limite possível para manter condições ecossistêmicas mínimas, que uma vez ultrapassado representaria sua derrocada permanente. Os reflexos seriam sentidos em toda a América do Sul, com a perda de regularidade na transposição de umidade que fornece as chuvas, essenciais para a sobrevivência das atividades humanas.

É neste ponto de vulnerabilidade extrema e de imenso risco que paira sobre a história natural brasileira que o governo federal se vê instado a prestar esclarecimentos no Judiciário, uma vez que se se comprova, na realidade dos fatos, um aumento expressivo da degradação ambiental, que notoriamente decorre da ineficácia governamental.

Na economia política global, com mudanças impostas por um modelo que considera obrigatoriamente o Meio Ambiente, elementos sociais e a governança (ESG), o atual governo brasileiro destoa com seu modelo de gestão ultrapassado, colhendo um estado de isolamento com prejuízos à imagem do país e reflexos negativos na área de comércio exterior. Dessa forma, coloca permanentemente em xeque a integridade ambiental das commodities brasileiras e a balança comercial do Brasil.

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Neste cenário preocupante sobre vulnerabilidades e riscos, os destinos da ordem econômica e do imenso potencial ecológico do Brasil, o que se espera do Judiciário é que se faça Justiça.

*Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam)

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