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A independência das instâncias de responsabilização e as mudanças na Lei de  Improbidade Administrativa

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Por Myrella Antunes Fernandes
Atualização:
Myrella Antunes Fernandes. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

A lei 14.230 de 25 de outubro de 2021, dentre as várias mudanças polêmicas, trouxe um velho tema que sempre rondou minha mente e que agora encontrou acolhida: a narrativa da independência das instâncias de responsabilização. A nova redação do art. 21 com o § 4º da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992) passa a prever a absolvição criminal como um evento impeditivo da continuidade ou do trâmite de uma ação de improbidade se versarem sobre os mesmos fatos.

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Pode parecer que, por estar academicamente na cadeira do processo penal, esta seja a comemoração por uma queda de braço de quem é a área que teoricamente sai mais fortalecida com a mudança legislativa, mas não é. A oportunidade de estagiar num escritório que cuidava de casos de diversos agentes políticos, primeiro na área de contencioso administrativo com casos de improbidade administrativa e posteriormente na área criminal, contribuíram, e muito, para esse crescente incômodo já que um mesmo fato e descrições idênticas tinham, não raro, desfechos completamente diferentes nas instâncias, um pela improbidade e outro pela responsabilidade penal.

E o mais interessante na experiência prática residia na seguinte visão: políticos temiam muito mais uma ação criminal que uma ação de improbidade. O rótulo de "ação penal" impunha um receio maior aos agentes públicos. E a minha angústia persistia, porque era comum não existir a condenação no juízo criminal, mas existir uma eventual condenação na seara de improbidade pelos mesmos fatos, que importava em sanções igualmente graves como, por exemplo, a suspensão de direitos políticos.

Durante a graduação tive oportunidade de fazer aulas optativas que estudavam especificamente o tema da improbidade administrativa. E em todas as aulas olhava para as discussões e pensava que cada vez menos fazia sentido pensar num direito sancionador que caminhasse à parte do direito penal, ou vice-versa. O que mais me assustava à época, confesso, era o plexo diminuto de garantias nas ações de improbidade administrativa para o potencial lesivo que o desfecho das ações poderia causar no agente público condenado. Pensava à época que o ideal era a inserção de rol de garantias processuais penais, com a adoção de rito processual penal para as ações de improbidade administrativa.

De um lado, ouvi de professores de Direito Penal que um plexo de garantias maior não fazia sentido nos processos sancionadores já que não há possibilidade de restrição da liberdade. Esse argumento me angustiava por dois motivos. O primeiro era o fato de que a suspensão de direitos políticos para um agente público é tão grave quanto a constrição temporária da liberdade, já que não poder ser eleito pode ser considerada uma morte temporária do cidadão. O segundo motivo era a Convenção Americana de Direitos Humanos prever que a suspensão/perda de direitos políticos só seria possível a partir de uma sentença penal condenatória. Ora, se a legislação internacional prevê que um rito processual penal deve ser seguido para suspensão de direitos políticos[1], como dizer que as mesmas garantias não precisavam ser estendidas?

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Por outro lado, não raro ouvi de professores de direito administrativo, juízes, advogados e procuradores com quem tive a salutar oportunidade de dividir meus questionamentos de que a Constituição previu uma quarta via de responsabilização: a responsabilidade por improbidade administrativa e que, apesar de ser estranho, era possível e constitucional essa dupla persecução pelos mesmos fatos e respostas diferentes do direito sancionador. Isso porque, o artigo 37, §4º da Constituição Federal ressalvava a possibilidade de responsabilidade penal para além das sanções da improbidade administrativa.

Uma opinião comum unia os administrativistas e penalistas com quem mantive sempre uma saudável interlocução: que a solução para evitar esses problemas era o direito penal renunciar à punição pouco, ou quase nada efetiva, e entregar ao direito sancionador a responsabilidade de realizar a responsabilização efetiva do agente público de um modo mais salutar e correto que não uma aplicação de pena pura e simples.

Apesar dos debates acadêmicos e da força que a lei de improbidade ganhou nos últimos anos, quase não se enxergava uma luz ao fim do túnel sobre o assunto já que a administrativização do direito penal é uma realidade que parece não ter solução imediata, a ver pela nova lei de licitações (Lei 14.133/2021) que inseriu os crimes em licitações e contratos administrativos dentro do Código Penal.

No entanto, pode parecer curioso, e pouco provável de se acreditar, mas a solução dada pelo legislador com a mudança na Lei de Improbidade com inserção do § 4º e até do § 3º parece fazer sentido para aqueles que muitas vezes sentiam uma incidência de bis in idem entre ambas as esferas de responsabilização. Agora, se um juiz criminal absolver o agente público, há óbice na ação de improbidade sobre os mesmos fatos.

E nesse sentido é válido ressaltar que o novo rumo legislativo está em consonância com o que a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça seguindo precedentes da Terceira Seção, entenderam recentemente no HC 601.533 de relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior sobre a mitigação da independência da esfera administrativa por meio da razoabilidade penal. No caso julgado, em que pese o detento ter sido absolvido na esfera penal por falta de provas para condenação (CPP, art. 386, VII), recebeu aplicação de falta grave no processo administrativo. Os Ministros entenderam que acolher as duas respostas traria uma incoerência entre as instâncias sancionatórias, o que não era possível, e determinaram o cancelamento da falta grave imposta.

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Dessa forma, parece que finalmente foi dado um passo em direção a uma maior segurança e razoabilidade ao caminho do direito sancionador e à interligação entre a improbidade administrativa e o direito penal. Afinal, um fato só tem várias esferas de responsabilização (civil, penal, administrativa e de improbidade administrativa para aqueles que aderem à quarta via de responsabilização), porque o próprio Estado as criou. Na natureza, um fato é apenas um fato. Expandir ou comprimir as instâncias de responsabilização está dentro daquilo que o legislador pode instituir em termos de atuação do poder sancionador e punitivo estatal. E é sempre bom ressaltar que isso não quer dizer mais ou menos impunidade.

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*Myrella Antunes Fernandes, formada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestranda em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Advogada

[1] Artigo 23. Direitos políticos

  1. Todos os cidadãos devem gozar dos seguintes direitos e oportunidades:
  2. de participar na direção dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente eleitos;
  3. de votar e ser eleitos em eleições periódicas autênticas, realizadas por sufrágio universal e igual e por voto secreto que garanta a livre expressão da vontade dos eleitores; e
  4. de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país.
  5. A lei pode regular o exercício dos direitos e oportunidades a que se refere o inciso anterior, exclusivamente por motivos de idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou condenação, por juiz competente, em processo penal.

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