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A execução 'provisória' da pena após decisão em 2ª instância

A Constituição Federal de 1988 não recebeu a alcunha de "cidadã" por acaso. Ela marcou a transição do período ditatorial, que se caracterizou pelo desprezo aos direitos individuais, para a nova democracia brasileira, que tem na proteção dos cidadãos a sua pedra fundamental. Um título inteiro do seu texto foi dedicado, aliás, aos direitos e garantias fundamentais, representando inegável avanço social.

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Por Rodrigo R. Monteiro de Castro e Pedro Luiz Cunha Alves de Oliveira
Atualização:

O direito à liberdade - assim como à vida, à igualdade, à segurança e à propriedade - foi, então, e finalmente, alçado à condição de inviolável.

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E, como forma de assegurar a inviolabilidade desse direito, tantas vezes ignorado na história recente do país, o art. 5º, LVII da Constituição, assim dispôs: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

Despindo a frase dos conceitos jurídicos nela contidos, revela-se o princípio da presunção ou do estado de inocência: um cidadão somente será considerado culpado após o esgotamento, no âmbito dos tribunais, das possibilidades de discussão da decisão judicial penal que lhe condenou; isto é, até o trânsito em julgado.

Há motivos relevantes, inclusive não jurídicos, para isso.

A pecha de culpado caminha lado a lado com a noção de prisão; ao senso comum, o cárcere não é lugar para inocentes. Ou, pelo menos, não deveria ser. Essa percepção tem o potencial de se aguçar em momentos de crise social, como de fato se revela no atual estado de crise política do país. A justiça, em muitas situações, passa, então, a ser confundida com justiçamento.

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Porém, não se pode ignorar a lógica do sistema penal: se culpado for, preso será. Não à toa o Código de Processo Penal definiu, em seu art. 283, que, exceto nos casos de flagrante delito ou de prisão temporária ou preventiva - cujos critérios estão previstos em Lei - o tolhimento da liberdade de um cidadão dependerá de sentença condenatória transitada em julgado, o que foi replicado no art. 105 da Lei de Execução Penal.

A antecipação se justifica, portanto, apenas em casos excepcionais.

Inobstante as previsões infraconstitucionais mencionadas, o cerne da proteção à liberdade está, mesmo, na Constituição Federal. E, como guardião da Constituição, o Supremo Tribunal Federal (STF) deve garantir a sua precisa aplicação.

Apesar da clareza do texto constitucional, muito se discutia acerca da possibilidade de execução provisória da pena após decisão em segunda instância ou grau.

Até que em 05 de fevereiro de 2009, sob a relatoria do Ministro Eros Grau, o Plenário do STF julgou o HC nº 84.078/MG e fez prevalecer o disposto no art. 5º, LVII da Lei Maior: nenhum cidadão poderia ser preso antes de decisão condenatória transitada em julgado.

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O Ministro Eros Grau, no voto vencedor, asseverou que a ausência de efeito suspensivo do recurso extraordinário (um dos meios processuais aptos a submeter uma causa ao crivo do STF), sobre a decisão condenatória recorrida, não representaria uma exceção à presunção ou ao estado de inocência.

E assim permaneceu o entendimento do STF por anos.

Mas, em 2016, houve um inexplicável redirecionamento.

Ao julgar o HC nº 126.292/SP, o Plenário do STF, por placar apertado, de 6x5, acatou a tese da possibilidade de prisão do acusado já após decisão condenatória proferida em segunda instância. E este posicionamento foi reafirmado, em sede de repercussão geral, quando do julgamento do ARE nº 964.246, bem como no indeferimento de medidas cautelares nas Ações Declaratórias nº 43 e 44.

A reviravolta jurisprudencial repercutiu em todos os cantos do país. As reações foram as mais diversas, tendo a opinião pública sido induzida a acreditar que se tratava, enfim, de um símbolo do combate à corrupção. Não era e não é. A prisão, neste cenário, virou motivo de catarse coletiva. Comemorava-se quase como se fora um gol da seleção nacional de futebol.

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O resultado, no entanto, é perigosíssimo: uma indisfarçada interpretação casuística da Constituição Federal.

Aliás, vozes corajosas denunciaram que se trincava, assim, a Carta Magna, pois, o que se anunciava, travestido de uma resposta à indignação generalizada com as denúncias de corrupção, era, na verdade, uma autorização para prática do arbítrio, ou seja, o início da execução de pena de pessoa ainda não condenada definitivamente. Portanto, uma latente ameaça a direito fundamental dos cidadãos.

Houve, no entanto, resistência. Resistência inaugurada, no plano Judiciário, pelo Ministro Marco Aurélio, que, pelo menos em duas oportunidades, após os julgamentos mencionados acima, adotou um lado: o lado da proteção dos preceitos constitucionais, negando a permissão para execução provisória da pena.

E, ao que parece, não é o único a adotar essa tendência. O Ministro Gilmar Mendes também afirmou a necessidade de rediscussão pelo STF. Ademais, há poucos dias, ele deferiu medida liminar, no HC nº 146.815/MG, para suspender o início de execução provisória de pena, confirmada em segunda instância, até o julgamento de mérito do habeas corpus. E, como ele foi um dos 6 que votaram a favor da execução provisória no julgamento do HC nº 126.292/SP, esta recente decisão pode ser um indício de nova reviravolta na jurisprudência da Corte.

O Ministro Celso de Mello, que já havia se posicionado, no Plenário do STF, contra a execução provisória da pena antes do trânsito em julgado, igualmente sinalizou a necessidade de revisão e pacificação do tema. Ao julgar o RHC nº 129.663/RS, desautorizou a Súmula nº 122 do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), cujo texto permitia a execução da pena após decisão condenatória em segunda instância.

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De acordo com o Ministro Celso de Mello, a prisão antecipada não é obrigatória - o que está em consonância com a comentada decisão do Ministro Gilmar Mendes -, e o posicionamento recente do STF não isenta os Tribunais de fundamentarem a ordem de prisão.

De fato, urge a necessidade de revisão e pacificação do tema. Por mais que existam questões de naturezas diversas envolvidas na análise - bem como manifestações que não necessariamente representam a vontade de certos grupos de interesse - o STF não pode se furtar de ter na Lei Maior o prisma de sua atividade julgadora. Presunção ou estado de inocência é princípio constitucional, e como tal, deve ser protegido pela Corte.

E não se diga que a lentidão da justiça tem o poder de justificar a supressão de direitos fundamentais. Aliás, nada, a não ser a própria Constituição Federal, pode legitimar tal supressão. Do contrário, dar-se-ia margem para a prática de todo tipo de arbitrariedade, em privilégio de valores fixados, exclusivamente, por grupos seletos, e em prejuízo dos verdadeiros interesses da sociedade.

Como discorreu o Ministro Eros Grau, no passado, "a Corte que vigorosamente prestigia o disposto no preceito constitucional em nome da garantia da propriedade não a deve negar quando se trate da garantia da liberdade, mesmo porque a propriedade tem mais a ver com as elites; a ameaça às liberdades alcança de modo efetivo as classes subalternas".

Realmente, nada justifica a incoerência sistêmica: vedar, por um lado, a execução de direito patrimonial antes do trânsito em julgado (salvo nas hipóteses de apresentação de caução idônea) e, paradoxalmente, por outro lado, permitir a execução provisória de pena privativa de liberdade.

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Aguarda-se o retorno do tema ao Plenário do STF, dando-lhe uma nova oportunidade de fazer valer as garantias fundamentais. O direito à liberdade é inviolável; e é por um posicionamento neste sentido que se estará zelando pela Constituição.

*Rodrigo R. Monteiro de Castro, presidente do Movimento de Defesa da Advocacia (MDA)

*Pedro Luiz Cunha Alves de Oliveira, diretor de Prerrogativas do MDA

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