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A democracia das promessas fáceis e não cumpridas

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Por Marcelo Martins Piton
Atualização:
FOTO: REPRODUÇÃO Foto: Estadão

O livro Cem Anos de Solidão1, de Gabriel García Márquez, conta a história do Coronel Aureliano Buendía, do Partido Liberal, durante a guerra civil perpetrada para retirar o Partido Conservador do poder. Após 20 (vinte) anos sem que ela tenha avançado para um lado ou outro, a comissão do Partido Liberal se reuniu, com o Coronel, para discutir a encruzilhada da guerra. Pediam, em primeiro lugar, que ele renunciasse à revisão dos títulos de propriedade de terra para recuperar o apoio dos latifundiários liberais. Pediam, em segundo lugar, que renunciasse à luta contra a influência clerical para obter apoio do povo católico. Pediam, por fim, que renunciasse às aspirações de igualdade de direitos entre os filhos naturais e legítimos, para preservar a integridade dos lares.

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Surpreendido, pois essas seriam as bases do Partido Liberal, o Coronel Aureliano Buendía, sorrindo, afirmou: - Quer dizer, então, que só estamos lutando pelo poder.

Imediatamente foi replicado por um dos Delegados: - São reformas táticas. Por enquanto, o essencial é ampliar a base popular da guerra. Depois, veremos.

Esse trecho é a moldura que tem como pintura a política brasileira: vivemos, após a redemocratização, em 1988, uma democracia de promessas não cumpridas, cujo efeito recente é a sua recessão.

Tamanhas são elas que em março de 2019 a Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal aprovou um projeto de lei que obriga os Partidos Políticos a seguirem o seu plano de partido. Em termos populares: está se tentando proibir o "estelionato eleitoral".

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Os partidos políticos, na sua maioria, transformaram-se em empresas privadas: são controlados por poucos, que atuam como se fossem seus donos, definem as coligações a seu bel prazer e controlam o fundo eleitoral. Tais fatos restam claro sempre que há eleições municipais, estaduais, federais e, até mesmo, para as mesas diretoras do Congresso Federal.

O exercício da democracia deveriam ser visto como uma corrida de revezamento, em que o eleito, após o seu percurso, exausto, passa o bastão para o próximo. Mas isso também não acontece. O mandato, muitas vezes, permanece por gerações na mesma família: o espaço democrático infelizmente é limitado.

E as consequências não poderiam ser piores. A década 2020 começou com a pandemia causada pela covid-19, a qual deixou claro, de uma vez por todas, que vivemos numa sociedade extremamente desigual, em que pese desde 1988, com a promulgação da Constituição Cidadã, tenhamos como objetivos fundamentais da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução as desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação - artigo 3.º.

Tivemos, após 1988, 08 (oito) eleições presidenciais e para o Congresso Nacional (Deputados Federais e Senadores), sem se mencionar as estaduais e municipais. Pouco mudou: as promessas se repetem e permanecem não cumpridas.

E assim caminhamos cada vez mais para a beira do precipício da incerteza, com a grande maioria da população, durante o dia, esperando um milagre (promessas) e, à noite, um prato de comida. Contudo, ainda que tenhamos todas essas diversidades, não podemos esquecer que sem política não há democracia.

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Assim, necessitamos de partidos políticos autênticos, que sigam os seus planos político e de orientação, que prezem pela alteridade de seus dirigentes, praticando internamente a democracia, que observem a fidelidade partidária e tenham caráter nacional. E, acima de tudo, que preguem pela diversidade.

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Por fim e de forma imprescindível, fazem-se necessárias condições mínimas para a participação democrática dos cidadãos. Segundo Boaventura de Souza Santos, são três: ser garantida a sobrevivência: quem não tem com que se alimentar e a sua família tem prioridades mais altas do que votar; não estar ameaçado: quem vive ameaçado pela violência no espaço público, na empresa ou em casa, não é livre, qualquer que seja o regime político em que vive; estar informado: quem não dispõe da informação necessária a uma participação esclarecida, equivoca-se quer quando participa, quer quando participa.

Sem isso, continuares esperando, esperando, esperando...

*Marcelo Martins Piton, defensor público do Estado do Rio Grande do Sul, subdirigente do Núcleo de Defesa Cível e mestrando em direito

1- Publicado em 1967, enquanto vivíamos, em solo brasileiro, uma Ditadura Militar. Foi agraciado com o Prêmio Nobel da Literatura, em 1982.

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