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A covid-19, o Fisco paulista e o feitiço do tempo

Bill Murray e Andie MacDowell interpretaram, em 1993, um casal na comédia "Feitiço do Tempo" (Groundhog day), na qual o personagem de Bill Murray sempre acordava no mesmo dia, não importando o que fizesse antes. Em 2014, o filme foi considerado um dos 100 mais importantes pela Hollywood Reporter.

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Por Walter Carlos Cardoso Henrique
Atualização:

Quem conhece o enredo vai relacioná-lo imediatamente ao confinamento e à quarentena que a covid-19 nos inseriu, porque a cada manhã despertamos com a expectativa de que o fim do isolamento se encerre ou seja definitivamente estabelecido.

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A história se desenvolve bem porque todos dela participam. Não apenas os protagonistas, mas todos ao redor. A cidade inteira se vê presa naquela trava temporal de repetições. Essa é a premissa: todos participam.

Voltando para a crise do coronavírus, encontramos no fisco paulista (e, portanto, no Poder Executivo do Estado de São Paulo) exemplo de exceção que tornaria a comédia acima um filme de terror.

Sim, recursos são importantes e a arrecadação não pode ou não deveria parar, mas as empresas fecham e seus colaboradores não vão poder retroalimentar a economia com seu consumo. Sensibilidade para preservar vidas houve, mas para manter empregos - neste momento - ainda não se revelou. As vidas que se preservam com uma mão não podem ser prejudicadas pela outra, em função do desarranjo econômico que presenciamos e, sabidamente, tende a se agravar.

Destaco, primeiramente, a Suspensão de Segurança 2066138-17.2020.8.26.0000 deferida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP). Com essa decisão judicial, as medidas liminares que postergavam, na crise atual, os pagamentos de ICMS no Estado de São Paulo foram revogadas, desincentivando a concessão de outras.

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Naqueles autos, argumentou a Procuradoria que o ICMS devido já tinha ingressado no caixa das empresas e que, portanto, poderia ser repassado imediatamente ao erário. Advocacia tem partido, portanto, não cabem críticas à Procuradoria. Acontece que dinheiro não tem carimbo e fluxo financeiro envolve planejamento presente e futuro, inclusive com ingressos e desembolsos.

Como se não bastasse, data de pagamento de tributos não envolve lei, podendo ser fixada pelo Executivo segundo a jurisprudência do STF (RE 140.669, 172.394, entre outros). Constou expressamente da ementa do RE 195.218 "não se encontrar sob o princípio da legalidade estrita e da anterioridade a fixação do vencimento da obrigação tributária". Em outras palavras, bastaria ao Executivo sensibilidade para trocar inadimplência presente por recursos efetivos em 30, 60 ou 90 dias. Como se percebe, o tema do prazo de pagamento do ICMS paulista nunca precisou envolver o conceito de moratória previsto pelo Código Tributário Nacional, este sim vinculado a lei prévia.

Se o próprio STF já se manifestou no sentido de que o Poder Judiciário pode rever atos executivos com base na adequação de meios e fins, tendo, ele mesmo, STF, interferido em obrigações financeiras previamente acordadas entre a União e o Estado de São Paulo, através da ACO 3363, para a manutenção de recursos destinados à saúde por parte do ente político devedor (Estado de São Paulo), caberia interferência similar do TJSP em favor das empresas. A meta destas nunca foi inadimplir, mas ter fôlego suficiente para pagar tributos sem se expor a multas e juros desnecessários no intervalo mais agudo da atual crise.

A conjugação de argumentos acima não é exaustiva, mas autoriza concluir pela falta de visão empresarial da Administração Tributária do Estado de São Paulo que, correndo o risco de nada receber neste instante, deixa, desde logo, de garantir equilíbrio presente e futuro, evitando o retrabalho administrativo e judicial que certamente levará a novos parcelamentos (mais execuções fiscais), além de contribuir para a preservação de empregos. Será que multa de mora e atualização pela taxa Selic justificam visão tão distorcida da realidade? Evidentemente, não.

As Suspensões de Segurança deferidas no TJSP e STF seguiram roteiro conhecido há décadas, qual seja, a não inserção do fisco no enredo em que está inserida a sociedade. E mesmo que o Poder Executivo paulista, através de seu braço arrecadatório, não colaborasse (como é o caso, porque as cartas administrativas de cobrança já foram enviadas) - como se pudesse não estar excluído da crise atual, caberia (como cabe) ao Poder Judiciário, peremptoriamente, interferir nessa adequação entre credor e devedor, no que diz respeito à data de pagamento do ICMS, porque segundo a já mencionada jurisprudência do STF, o surgimento e a extinção das obrigações tributárias envolvem lei (art. 150, I, da CF), mas não a data em que deverá ser quitada a respectiva guia.

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Se o Poder Judiciário fez papel relevante na preservação de recursos para o combate à pandemia, pode e deveria ter feito o mesmo com relação à manutenção de fluxos que preservam atividades econômicas e, por conseguinte, empregos e a vida digna de seus cidadãos. Se os limites de endividamento do Estado de São Paulo são reais, também são os das empresas e do contexto social em que estão inseridos seus colaboradores. E é bom que se frise que o Poder Judiciário não interferir nessa adequação de datas também lhe será prejudicial, porque é sua estrutura humana que viabiliza o pagamento forçado dos tributos não pagos. O prejuízo maior pode não ser agora, mas depois.

Não há enredo bom para a crise atual sem a participação do fisco paulista e sem a união de todos os órgãos do Poder Executivo. Não há harmonia entre poderes sem o exercício pleno de cada uma das respectivas funções, especialmente àquela que compete preservar direitos e obrigações, conjugando proteção à vida e desenvolvimento econômico.

*Walter Carlos Cardoso Henrique, advogado, integrante do Instituto de Pesquisas Tributárias (IPT) e do Conselho de Assuntos Tributários da Fecomercio-SP e professor de Direito Tributário da PUC/SP

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