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A covid-19 e seu impacto na responsabilidade civil das relações de consumo

Por Victor Graça e Larissa Sento
Atualização:
Victor Graça e Larissa Sento. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Declarado como pandemia global pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o novo coronavírus alcançou também o Brasil e tem impactado em diversos setores da economia, como indústria, comércio e turismo. Os Ministérios da Justiça, da Saúde, da Economia e do Turismo e as Agências Nacionais - Anac e Anvisa - estão acompanhando de perto os acontecimentos e já disponibilizaram orientações que devem ser seguidas tanto pelas empresas como pelos consumidores, para combater a disseminação do vírus.

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Mas como fica a responsabilidade civil nas relações de consumo estabelecidas entre fornecedores e consumidores em tempos de pandemia mundial da covid-19? O Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) baseia-se na teoria do risco do negócio, prevista no seu artigo 14, estabelecendo para os fornecedores a responsabilidade civil objetiva, que independe de culpa, bastando a apresentação do nexo causal entre o defeito do produto ou serviço e o acidente de consumo.

De acordo com esta teoria, os fornecedores devem, de antemão, calcular os seus potenciais riscos, assim como evitar os danos que possam vir a causar aos consumidores, pois caso não seja possível, incorrerá na obrigação de indenizar os prejuízos advindos da sua atividade, posto que fazem parte do risco do seu negócio.

Com efeito, a lei de proteção do consumidor não contemplou, como previsto no Código Civil, o caso fortuito e a força maior como excludentes de responsabilidade, vez que estas estão atreladas à culpa e sendo a responsabilidade dos fornecedores, como dito, em regra, objetiva, tal análise não se faz necessária.

Pela leitura do CDC, art. 12, § 3º e art. 14, § 3º, que tratam do fornecimento de produtos e serviços, respectivamente, percebe-se que a excludente de responsabilidade nas relações de consumo reside apenas na ilegitimidade do fornecedor ou no fortuito externo, neste último caso, que nos interessa nesse artigo, quando o risco não decorre da atividade direta do fornecedor.

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Pois bem. Durante a pandemia do coronavírus são recorrentes situações em que os fornecedores de produtos e serviços estão impossibilitados de cumprir suas obrigações contratuais, mesmo adotando todas as medidas ao seu alcance, estando caracterizada, em tese, a hipótese do fortuito externo acima citada, excludente de sua responsabilidade.

É sabido, por sua vez, que os contratos sujeitos ao Código de Defesa do Consumidor são regulados por normas protetivas, que partem da concepção de vulnerabilidade e de necessidade de proteção do consumidor. Tanto é assim que, no seu artigo 4º, prevê expressamente: "A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo".

Deste modo, nas relações de consumo presume-se, dentre inúmeras outras proteções, a hipossuficiência do consumidor, a obrigação de interpretação das cláusulas contratuais de maneira favorável a estes, além da possibilidade de nulidade automática de qualquer cláusula que estabeleça obrigações abusivas ou que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada. Isto sem falar no o art. 6°, inciso V do CDC, que determina a revisão de cláusulas contratuais que se tornem excessivamente onerosas para o consumidor em razão de fatos supervenientes, proteções estas previstas no CDC.

Assim, em se tratando da pandemia de covid-19, como visto, o consumidor encontra-se amparado pelo CDC, estando, em regra, livre do pagamento de multas contratuais, tendo, ainda, o direito de pedir remarcações e reembolsos, dentre outras proteções. De outro lado, o fornecedor, como dito, segundo a mesma legislação, não poderia responder por inadimplementos decorrentes de fortuito externo, ou seja, a que não deu causa e fora da sua atividade fim.

Neste contexto, diante de exclusões recíprocas de responsabilidade, para resolver o impasse, não nos parece razoável considerar que uma pandemia mundial possa ser considerada como risco inerente à atividade empresarial, atribuindo-se todo o peso financeiro decorrente da mesma exclusivamente às empresas fornecedoras, sob pena de se comprometer toda cadeia de produção e consumo, gerando colapso econômico.

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Em linhas gerais, o microssistema ora tratado, é estruturado para defender o consumidor, mas, por outro lado, não admite desequilíbrio nessa relação a ponto de gerar onerosidade excessiva ao fornecedor em que este seja obrigado a arcar com todos os ônus diante de um fortuito externo.

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Aqui, oportuno esclarecer que as interrupções na atividade econômica e as incertezas sobre o futuro, em razão do coronavírus, já tem provocado abalos no mercado brasileiro. A propósito, o dólar superou pela primeira vez o patamar de R$ 5,20 e a Bovespa saiu do patamar de 70 mil pontos, acumulando queda de mais de 40% em 2020.

O Brasil havia iniciado o ano com projeções que apontavam um crescimento econômico em torno de 2,5% em 2020, o que seria um grande avanço, comparado com os últimos três anos. Por conseguinte, em razão das preocupações acerca dos impactos do coronavírus, essas projeções de crescimento da economia brasileira têm sido revistas para baixo.

Assinale-se que diversas consultorias especializadas já estimam que o Brasil registrará retração este ano, correndo até mesmo o risco de enfrentar uma nova recessão. O próprio Governo Federal já admite o risco de recessão, portanto o cenário econômico para o ano de 2020 é incerto, exigindo cautela dos governos, empresas e consumidores.

Neste cenário, é importante destacar que as empresas não podem ser indiscriminadamente responsabilizadas, sendo necessário ter em mente que a atividade empresarial possui uma função social e sua preservação é de interesse da sociedade, já que gera riqueza econômica, cria empregos e rendas e, desta forma, contribui para o crescimento e desenvolvimento socioeconômico do País.

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Por outro lado, práticas consideradas abusivas, como elevar, sem justa causa, os preços dos produtos e serviços continuarão a ser rechaçadas (39, X, do CDC), principalmente em um contexto social e econômico em que se visa políticas e medidas que reduzam o risco da doença, assim como garantam o acesso aos produtos e serviços e que promovam a proteção e recuperação da sociedade como um todo.

Neste contexto, a pandemia global afetou e ainda afetará diversas áreas, dentre elas a de consumo. Impacto imediato se deu no setor do turismo e por isso, o governo federal adotou a Medida Provisória nº 925, de 18 de março de 2020, que estabelece regras emergenciais para a aviação civil brasileira, dentre estas, determinou que os fornecedores concedam aos seus respectivos consumidores crédito correspondente ao valor das passagens aéreas adquiridas, para utilização no prazo de até 12 meses, contados da data do voo contratado, com total isenção de penalidades contratuais.

Ressalte-se que o turismo não foi o único setor afetado. Os Governos Federal, estaduais e municipais determinaram, por conta do coronavírus, medidas que visam o isolamento social, ocasionando a suspensão do funcionamento de centros comerciais e demais atividades econômicas, educacionais e de lazer, como shoppings, escolas, restaurantes e outros estabelecimentos comerciais, o que, por certo, ocasionará também nesses setores repercussões econômicas negativas a serem solucionadas.

Assim, ante ao panorama mundial, no intuito de cooperar e minorar eventuais prejuízos, muitas empresas já estão flexibilizando suas regras diante da pandemia. Os consumidores, deste modo, podem entrar em contato com seus fornecedores de produtos e/ou serviços nos canais disponibilizados em suas plataformas digitais ou na plataforma mantida pelo Ministério da Justiça (consumidor.gov.br), a fim de negociar prazos, valores, suspensão temporária do contrato, remarcações e até mesmo cancelamentos, entre outras medidas.

Como visto, a situação que estamos atravessando ocasionada pelo coronavírus, interfere diretamente nas relações diárias de todos os setores sociedade. Com o fechamento dos estabelecimentos em geral e paralisação de parte considerável da atividade econômica do país, prejuízos advirão para os consumidores e fornecedores, sendo que ambos possuem respaldo legal para se protegerem desse fortuito aqui tratado.

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Portanto, a solução mais adequada para o momento que estamos vivendo é o diálogo e a negociação entre as partes, buscando-se o consenso na solução das relações contratadas. Os fornecedores devem apresentar alternativas aos consumidores, como feito, por exemplo, no setor de aviação com as passagens aéreas. Já os consumidores, neste contexto, podem decidir com razoabilidade, optando por medidas mais brandas, pela remarcação no lugar do cancelamento, pela reutilização quando poderia exigir o reembolso, entendendo a importância de suas decisões e, sobretudo, no impacto sobre as pequenas e médias empresas, para que prevaleça o equilíbrio, o bom senso e empatia.

*Victor Graça e Larissa Sento, advogados e sócios do escritório Pessoa & Pessoa Advogados Associados

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