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A competência da Justiça Federal do Estado do Amazonas para instruir e julgar o assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips na Amazônia

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Por Rogério Tadeu Romano
Atualização:
FOTO: PF  

Trago à colação o julgamento do CC 4469 / PE, S3 - TERCEIRA SEÇÃO; data do julgamento, 17/06/1993.

Tem-se quanto a publicação:

DJ 02/08/1993 p. 14172

RSSTJ vol. 10 p. 199

RSTJ vol. 80 p. 239

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RT vol. 701 p. 382

Foi essa a ementa para aquele julgamento:

CC - CONSTITUCIONAL - COMPETÊNCIA - CRIME - SILVÍCOLA (VITIMA) - RESERVA INDÍGENA - A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL ESTA CONSAGRADA NO ART. 109 (CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA). O OBJETO JURÍDICO E O REFERENCIAL. NÃO OBSTANTE A TUTELA DA UNIÃO AOS ÍNDIOS, COMPETENTE E A JUSTIÇA COMUM DO ESTADO PARA PROCESSAR E JULGAR CRIMES DE HOMICÍDIO E LESÃO CORPORAL, OCORRIDOS EM ÁREA DE RESERVA INDÍGENA, AINDA QUE A VITIMA SEJA ÍNDIO.

No passado, a matéria foi objeto de julgamento no CC 3.910 - 0, em que foi relator o ministro Adhemar Maciel, discutiu a matéria com relação aos interesses da União Federal para atrair a competência da Justiça Federal quando se tratar de questão(ponto controvertido) envolvendo silvícolas e sua proteção.

Como expôs Vladimir Souza Carvalho(Competência da Justiça Federal, 2ª edição, Primeira Tiragem, pág. 127) a Constituição vigente incluiu na competência da Justiça Federal as questões concernentes à disputa sobre direitos indígenas, de índole meramente civil, à luz do artigo 109, XI.

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Mas, antes de 1988, a legislação infraconstitucional já vinha conduzindo ao entendimento de competência plena dos juízes federais para instruir e julgar essas questões.

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Em razão disso, a Lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973, o chamado Estatuto do índio, como já afirmara, outrossim, Vladimir Souza Carvalho(obra citada), no seu artigo 36, atribuiu à União, via do Ministério Público Federal, parte autora legitimada, as medidas judiciais adequadas à proteção da posse dos silvícolas sobre as terras que habitem, frisando, no parágrafo único que, quando as medidas judiciais previstas neste artigo forem propostas pelo órgão federal de assistência(ao índio), ou contra ele, a União será litisconsorte ativa ou passiva.

Realmente, como disse o ministro Moacir Catunda, CNJ 1.487 - SP, DJU de 11 de março de 1974, pág. 1.728, as questões incidentes sobre as terras indígenas, consideradas como complexas questões fazem surgir o interesse da União, na sua condição de proprietária das terras ocupadas pelos indígenas, que têm o usufruto sobre elas.

Observe-se que o artigo 20, XI, inclui entre os bens da União Federal, "as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios", trazendo o evidente interesse da União Federal para causas que delas se ocupe e com isso a competência da Justiça Federal para instruir e julgar esses casos.

O ministro José Dantas, nessa linha de pensar, no julgamento do AC 126.037 - GO, DJU de 11 de outubro de 1988, pág. 23.898, entendeu que resulta compulsório o interesse da União Federal nessas causas envolvendo terras ocupadas por silvícolas.

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É certo que o STJ, no julgamento do CC 2.271 - MS, DJU de 1 de outubro de 1990, pág. 14.791, entendeu que compete à União Federal processar e julgar a ação de despejo movida pela Fundação Nacional do Índio(FUNAI) relativa a terras reservadas, não só por envolver a discussão sobre direito indígena, mas também em face da qualificação atribuída àquela autarquia, como disse o relator ministro Barros Monteiro, naquele julgado.

Vamos ao caso do assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Philips, que ocorreu em junho deste ano na Amazônia.

O caso estava na competência da Justiça Comum do Estado do Amazonas e foi levado à competência da Justiça Comum Federal daquele Estado da Federação.

A determinação da competência da Justiça Federal desses crimes dolosos contra a vida em conexão com a ocultação de cadáveres, ocorridos na Terra Indígena Vale do Javari, local do delito, dependeria da motivação desses crimes, como alertaram Ciro Barros, Rubens Valente, Avener Prado, José Medeiros, em excelente reportagem para o site de notícias do jornal do Brasil, em 18 de junho de 2022, dias depois da morte das vítimas.

Ali foi dito:

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"Caso o inquérito hoje conduzido pela Polícia Civil conclua que há conexão do crime com a atuação de Bruno Pereira na Terra Indígena Vale do Javari, o Ministério Público estadual poderá suscitar um conflito de competência, ou seja, indagar ao Judiciário sobre qual esfera deverá julgar o processo criminal. O MP poderá solicitar ao juízo que remeta o processo à Justiça Federal, já que terras indígenas são registradas em cartório como patrimônio da União e devem ser protegidas por órgãos federais, como a Funai, o Ibama e a própria PF. "

Mas, em verdade, o caso rumoroso não foi encaminhado à Justiça Federal apenas porque a Polícia Federal está investigando. Isso não determina a competência da Justiça Federal. Por outro lado, não determinaria a competência da Justiça Federal o fato de Bruno Pereira ter sido servidor da FUNAI. Ora, ele estava licenciado do cargo público. Servidor de carreira da Funai (Fundação Nacional do Índio) desde 2010, Pereira pediu licença depois de ter sido exonerado da Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém-Contatados, na qual esteve por 14 meses(Folha de São Paulo, 15 de junho de 2022).

Antes de liderar a Coordenação de Índios Isolados, Pereira esteve à frente da Coordenação Regional do Vale do Javari, onde foi morto por conta de sua atuação.

Veja-se que é possível aplicar o artigo 109, IV, da Constituição Federal para levar o caso para a competência da Justiça Federal para instruir e julgar o caso.

Um argumento que pode ser usado para o caso ir à Justiça Federal seria a comprovação de que os executores agiram a mando de alguma terceira pessoa com interesse em áreas da União ou relacionada ao tráfico internacional de drogas, como lembrou aquela reportagem aqui citada no site do Jornal do Brasil.

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A Univaja emitiu uma nota criticando o comunicado da Polícia Federal. A entidade disse que "a PF desconsidera as informações qualificadas, oferecidas pela UNIVAJA em inúmeros ofícios, desde o segundo semestre de 2021."

Segundo a organização dos indígenas, as informações enviadas nos ofícios apontam para a existência de um grupo organizado atuando nas invasões à TI Vale do Javari. "A nota à imprensa, emitida pela PF hoje corrobora com aquilo que já destacamos: as autoridades competentes, responsáveis pela proteção territorial e de nossas vidas, têm ignorado nossas denúncias, minimizando os danos, mesmo após os assassinatos de nossos parceiros, Pereira e Phillips", afirma a nota.

Veja-se a Constituição:

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

IV - os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral;

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Para o caso trata-se de crime praticado contra os interesses da União Federal, por envolver terra ocupada por indígenas(Terra Indígena Vale do Javari, Amazonas).

Pois bem.

Como disse o Estadão, em reportagem publicada em 9 de julho do corrente ano, "o processo que investiga a morte de Bruno e Dom foi remetido, anteontem, da Comarca de Atalaia do Norte para a Justiça Federal. Provocada pelo Ministério Público, a juíza Jacinta Silva dos Santos, que era responsável pelo caso, entendeu que a motivação dos crimes está diretamente ligada aos interesses dos indígenas."

Segundo o Portal Juristas, em 8 de julho de 2022, tem-se:

"A juíza Jacinta Silva dos Santos, da Comarca de Atalaia do Norte (AM) remeteu para a Justiça Federal o processo sobre os homicídios do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Philips, na região do Vale do Javari, no dia 5 de junho. A decisão atendeu um pedido do Ministério Público do Amazonas (MPAM), que pediu declínio de competência para o âmbito federal.

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A magistrada, ao analisar o relatório das investigações das Polícias Civil e Federal, considerou que a motivação dos assassinatos está diretamente ligada com os direitos indígenas, 'cuja análise da matéria jurídica é de competência da Justiça Federal'. "Essas informações não constavam anteriormente nos autos, o que permitia, portanto, a atuação do Juízo estadual nesse processo", disse a juíza em nota à imprensa."

Em sendo assim a competência em primeiro grau de jurisdição para instruir e julgar esses delitos narrados contra Dom Philips e Bruno Pereira será do Tribunal do Júri Federal no Estado do Amazonas(Júri Federal) que vier a ser instalado, não sendo de competência da Justiça Comum Estadual julgá-los, não havendo qualquer razão para instalação de incidente de deslocamento da competência, pois o crime de homicídio e a ocultação dos cadáveres, em conexão, ocorrido em terra da União Federal, ocupada por indígenas, já determina a competência da Justiça Federal para instruir e julgar o caso.

*Rogério Tadeu Romano, procurador regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado

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