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A cleptocracia brasileira

Por Affonso Ghizzo Neto
Atualização:
Affonso Ghizzo Neto. FOTO: INAC/DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

A cleptocracia se verifica presente em muitas instituições e governos, podendo ser identificada pelos reiterados escândalos de corrupção utilizando o Estado como instrumento de enriquecimento ilícito de agentes públicos, políticos e governantes, em muitos casos, com conexões com o crime organizado, ligados aos pagamentos de subornos, financiamentos de campanhas eleitorais, branqueamento de capitais, evasão de divisas, enfim, procedimentos criminosos diversos associados às atividades políticas e governamentais. Independentemente de quais sejam os mecanismos de corrupção empregados, o Estado-Corrupção funciona como uma grande engrenagem burocrática posta a serviço de empresários corruptores e agentes públicos, políticos e governantes corruptores. Nesse contexto, cumpre verificar o atual estágio e solidez de nossas instituições e governos, especialmente em tempos em que alguns "teimam" em fazer cumprir o mandamento constitucional, ousando afrontar um sistema onde a corrupção é endêmica com práticas criminosas já institucionalizadas na Administração Pública.

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Num sistema cleptocrata o "poderoso chefão" pode governar organizando o sistema político da melhor forma para obter suas ganâncias e ganhos pessoais. Em casos extremos, este "poderoso chefão" ou, nas palavras de Mancur Olson, este 'Stationary Bandit'[1], pode atuar como um monopólio privado, que se esforça pela eficácia máxima produtiva, porém restringe o resultado de todo este esforço da economia em proveito próprio, maximizando seus benefícios e lucros privados. Assim, por exemplo, um 'Stationary Bandit' pode gerenciar, manipular, aumentar ou restringir a produção de matérias-primas ou outras riquezas disponíveis, para manter elevados os preços no mercado internacional e aumentar seus ganhos. Conforme seus interesses, o governante cleptocrata poderá sacrificar os benefícios de sua clientela que beneficia indevidamente, assim como, inclusive, favorecer um sistema meritório que interfira positivamente na produção de bens e serviços e, consequentemente, aumente seus lucros. Como observa Rose-Ackerman: "El cleptócrata favorecerá políticas que transfieran el máximo de recursos a su bolsillo, manteniendo al mismo tiempo la productividad de la economia". Os governos corruptos sempre apoiarão políticas que produzam benefícios pessoais e privados, ainda que estas políticas resultem em níveis muito baixos de riqueza e satisfação social.[2]

Governantes cleptocratas consideram o sistema político como uma fonte de arrecadação contínua de benefícios pessoais, recebendo subornos e outras vantagens, sempre de forma "justificada" e "oportuna", com o objetivo único de encher os 'bolsillos'. Segundo Sarah Chayes, em sua obra Thieves of state: why corruption threatens global security[3], a corrupção institucionalizada pode causar muito mais do que graves rupturas sociais, levando ao extremismo violento. É o que a autora identifica como basic fact, demostrando que onde existe má governança - ausente o Estado de Direito - terceiros ocupam este espaço. Ao abordar a cleptocracia confirma que governos se transformam em verdadeiras organizações criminosas que estruturam as engrenagens do Estado visando exclusivamente o enriquecimento pessoal de seus membros e 'sócios'. Chayes, antes de se calar, além do jornalismo ou do ativismo humanitário, reagiu irresignada diante da realidade desconhecida, se rebelando contra um governo que se revelou cleptocráta, o que descreve com detalhes em sua obra, desmascarando lideranças corruptas que sugam a riqueza de um país inteiro, causando desigualdades sociais, injustiças e violências extremas.

Evidentemente, como já demonstraram revoluções, crises e revoltas ao longo da história da humanidade, um governo cleptocrata poderá necessitar, ainda que casualmente, agradar a população para se manter no exercício do poder econômico, político ou de autoridade. Além disso, como relata Chayes no exemplo do governo cleptocrata de Karzai no Afeganistão, todo aquele que desejar se beneficiar da estrutura corrupta de governo deverá fazer uma oferta ou conceder alguma vantagem, ou benefício aos governantes, havendo uma verdadeira simbiose entre interesses públicos e privados.

A situação torna-se mais dramática em sociedades como a brasileira, caracterizadas por espaços marcados por uma alta percepção social da corrupção, onde essas organizações criminosas solidificam círculos viciosos clientelistas de difícil ruptura. Nestes entornos a desconfiança social incentiva o funcionamento parcial das instituições de governo cleptocrata pode se converter em um grave problema de ação coletiva.[4] Este tipo de modelo de organização criminosa, instituído em governos cleptocrátas pode ser bem-sucedido quando consegue angariar os apoios sociais necessários para o regular funcionamento e sobrevivência, trabalhando com a colaboração de outras redes de poder através de articulações nacionais e internacionais, na iniciativa pública e privada, sempre com o objetivo comum e primordial do lucro e da vantagem ilícita. Como adverte Chayes não existem muitas histórias de sucesso na luta contra o fenômeno da corrupção. Em parte, porque os atuais níveis e estratégias criminosas construídas por governos creptocratas, são relativamente novos, sendo necessário compreender o real alcance e as verdadeiras consequências deste fenômeno no mundo moderno. É preciso persistir acreditando numa ética universal de controle social, assim como na capacidade humana de exigir níveis básicos de justiça social e de lutar para a implementação de políticas públicas universalmente reconhecidas.

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[1] ROSE-ACKERMAN, Susan. La corrupción y los gobiernos: causas consecuencias y reforma. Traducción de Colodrón Gómez. Madrid: Siglo Veintiuno de España Editores, 2001, p. 157.

[2] ROSE-ACKERMAN, Susan. La corrupción y los gobiernos: causas consecuencias y reforma. Traducción de Colodrón Gómez. Madrid: Siglo Veintiuno de España Editores, 2001, p. 158.

[3] CHAYES, Sarah. Thieves of state: why corruption threatens global security. In: W.W. Norton & Company, New York, London, 2015, p. 205.

[4] Relembrando, um dilema de ação coletiva ocorre quando os indivíduos que fazem parte de um mesmo grupo se comportam de maneira racional a partir do ponto de vista individual buscando seus interesses particulares. Entretanto, assim agindo, acabam por gerar uma situação coletiva em que todos saem perdendo.

*Affonso Ghizzo Neto, doutor pela Universidade de Salamanca - USAL. Mestre em Direito pela UFSC. Promotor de Justiça. Idealizador da campanha "O que você tem a ver com a corrupção?". Autor da obra Corrupção, Estado Democrático de Direito e Educação. Apresentador e cofundador do podcast "Fala para o vereador"

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Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção

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