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A capitalização como parte do sistema previdenciário brasileiro

Por Wagner Balera
Atualização:
Wagner Balera. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Importa analisar também, neste momento, perspectivas e desafios da proteção social. A expressão proteção social é gênero que compreende não apenas a Seguridade Social, mas inúmeros programas sociais que estão além do universo das seguridades saúde, previdência e assistência.

A expressão foi definida por Celso Barroso Leite em "Da proteção social no Brasil", trabalho pioneiro dos anos setenta que bem valeria nova edição.

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O que nos reserva o futuro da proteção social?

Ulrich Beck discorre sobre a sociedade de risco e o significado dos riscos na modernidade tardia. E estamos vivenciando hoje um certo fenômeno da sociedade de risco que é a pandemia.

A sociedade de risco é caracterizada justamente por esses eventos imprevisíveis. Entre nós ocorreram os desastres de Mariana e Brumadinho, na Ucrânia, Chernobyl e no Japão, Fukushima.

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Ao falarmos em perspectiva temos o dever de observar o universo cambiante da sociedade de risco.

Sob o ângulo jurídico-previdenciário, no qual me situo, a perspectiva é a jurídica. Os desafios são sempre os que o Direito propõe e enfrenta.

E, com esse olhar, verifiquemos os termos do artigo 96 da Lei 8.212, de julho de 1991. O preceito diz: "O Poder Executivo enviará ao Congresso Nacional, anualmente, acompanhando a Proposta Orçamentária da Seguridade Social, projeções atuariais relativas à Seguridade Social, abrangendo um horizonte temporal de, no mínimo, 20 (vinte) anos, considerando hipóteses alternativas quanto às variáveis demográficas, econômicas e institucionais relevantes."

Observemos bem! Projeções atuariais, em horizonte temporal de 20 anos e hipóteses alternativas quanto às variáveis demográficas, econômicas e institucionais.

Ninguém pode pensar na Seguridade Social como algo que se resolve de hoje para amanhã. É sistema vocacionado para o futuro do bem-estar das pessoas, da sociedade.

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Sistema que projeta para o futuro, com dimensão temporal suficiente para que haja o necessário cálculo atuarial apto a revelar os custos garantidores da sustentabilidade da seguridade social.

Todas as prestações de seguridade social geram custos: na saúde, na previdência social e na assistência social.

Qualquer iniciativa a ser tomada hoje deve mirar o horizonte temporal de 20 anos. Eis o custo que deve ser estimado, à luz da técnica atuarial.

Técnica que consiste em matemática especializada que projeta, a partir de dados, o que significará o risco a ser coberto nesse largo período.

Que riscos rondam o edifício da seguridade social?

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O primeiro é o da doença. Hoje, particularmente, aquela que é provocada pelo Covid 19, que mata no Brasil e no mundo milhares de pessoas.

O padrão clássico de resposta da seguridade consiste em socorrer o doente sob a perspectiva do serviço médico e conferir, igualmente, a proteção financeira para o doente, mediante benefícios.

Outros riscos: a invalidez, que incapacita de maneira permanente para o exercício de qualquer trabalho. A depender da gravidade dos efeitos do Covid 19 é possível que alguém perca, por completo, a capacidade de trabalho. Do mesmo modo, a morte, que vitima o segurado e gera a pensão para suprir o sustento dos dependentes do falecido.

A projeção atuarial deve engendrar os cálculos para o custo e consequente cobertura dessas distintas modalidades de prestações.

Dados estatísticos registram a realidade atuarial. Quantos pereceram, quantos adoeceram, quantos ficaram inválidos...

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Outro risco é o do desemprego. Milhares e milhares de postos de trabalho nunca mais serão ocupados. E a seguridade social deverá dar suporte, por certo tempo, ao desempregado.

O artigo 96 da Lei 8.212 exige que se projetem perspectiva sobre como evoluirão em 20 anos a doença, a invalidez, a velhice, o desemprego e a morte. Dados que habilitem o Estado a projetar a receita necessária e suficiente para cobrir as despesas geradas em função dos riscos.

O artigo 96 da Lei 8.212 também fala nas variáveis demográficas. A demografia permite que se vislumbre como a sociedade se desenvolverá doravante.. Dado desse tipo define, exemplificativamente, a longevidade.

A sobrevida, em 1960, era de 62 anos. Hoje em dia é de 73 anos.

Cada vez que aumenta a sobrevida, o que acontece com a seguridade social? Aumenta o dispêndio, porque quem sobrevive por mais tempo recebe benefício durante lapso de tempo maior.

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Com a pandemia, será afetado esse registro de sobrevida, mas um dos benefícios será substituído por outro. Portanto, às milhares de mortes de segurados corresponderá a outorga de outras tantas milhares de pensões.

O dado demográfico, com a pandemia, será alterado significativamente. Mas o quadro não é suficientemente claro. Uma nuvem embaça os registros dos dados disponíveis.

Outro elemento registrado no art. 96 da Lei de Custeio é o econômico. O pensador uruguaio da Seguridade Social, Francisco de Ferrari, dizia, com exatidão, que a seguridade social nada mais é do que uma economia bem organizada. Se a economia funciona bem, a seguridade vai bem. Mas, se a economia vai mal, as finanças da seguridade serão abaladas quase que numa relação de causa e efeito.

A pandemia provoca desorganização econômica em larga escala. Inúmeros empreendimentos deixarão de existir. Muitos trabalhadores individuais não terão mais trabalho.

A providencial medida do auxílio emergencial, um benefício assistencial que garante a sobrevivência de milhões de pessoas que ficaram à míngua, é transitória. E depois? Milhões de pessoas não sabem o que vai acontecer, nem tampouco o que lhes vai acontecer.

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Em 2019, a Seguridade Social, particularmente a Previdência, foi objeto de significativa reforma. Parecia que tudo fora, finalmente, resolvido.

Falava-se, em economia de 1 trilhão de reais, em um horizonte de 10 anos. Seguramente, a pandemia jogou pelo ralo toda essa expressiva economia.

Observemos, de novo, as variáveis do citado artigo 96 da Lei n. 8.212.

O dado demográfico será profundamente alterado. O dado econômico será gravemente alterado e as projeções atuariais exigem revisão imediata.

Os dispêndios com saúde terão como resultado, é só olharmos ao redor, patamares nunca dantes projetados.

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O derradeiro dado do artigo 96 é o institucional.  O que acontecerá depende de mudanças institucionais que demonstrarão a insuficiência da reforma de 2019.

Em breve, outra etapa da reforma previdenciária será anunciada.

Defendo, há anos, que o paradigma institucional da seguridade social deve estar perfilado com a Convenção 102 da Organização Internacional do Trabalho, que propugna por patamar mínimo, básico, de proteção social.

Defendo que só com os padrões das normas mínimas haverá sobrevivência futura para o sistema.  Se a tanto não atentarem, quanto antes, os governantes, a seguridade social não atenderá a função que lhe foi cominada pelo constit uinte.

A receita não será suficiente para bancar a despesa. A crônica do desequilíbrio financeiro e atuarial já pode ser escrita hoje.

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Vale lembrar que a proposta que deu origem à EC 103, de 2019, propunha ao debate a modelagem adicional do regime de capitalização.

O sistema de previdência atual é o chamado regime de repartição: o que se arrecada no mês de setembro será gasto no mês de outubro. Não há uma caixa que amealhe os recursos a serem gastos no futuro.

O regime de repartição está registrado na Lei Orçamentária anual. Essa lei estima a receita e projeta a despesa. Tudo o que entrar, pelas receitas de tributos e de dotações orçamentárias das pessoas políticas, será contabilizado e tudo o que sair com saúde, previdência e assistência será rigorosamente apurado e oportunamente auditado pelo Tribunal de Contas da União.

A proposta da capitalização, que não atingiria a totalidade do sistema, mas parte dele, muda o enfoque de parcela da receita e destina essa quota para a criação de previdência individual. É regime no qual o trabalhador amealha parcela dos seus ganhos e, no futuro, quando cumprir os requisitos de exigibilidade, fruirá a prestação durante o período que for avençado.

Ao regime geral, que é universal, incumbirá prover as necessidades básicas do trabalhador e dos seus dependentes, sob o enfoque da repartição.

Ao regime de capitalização é confiada a tarefa de outorgar, a quem queira fruir de prestações mais elevadas, a complementação proporcionada pelos ganhos que amealhou a partir do monte capitalizado.

Ao rejeitarem in limine até mesmo a discussão dessa fórmula, os governantes perderam tempo. Mais dia, menos dia, terão que voltar ao tema.

*Wagner Balera, advogado e professor universitário. Mestre, doutor e livre-docente pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor titular de Direito Previdenciário da PUC-SP

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