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A atualidade da Convenção Interamericana contra a Corrupção

Por Liziane Paixão Silva Oliveira
Atualização:
Liziane Paixão Silva Oliveira. FOTO: INAC/DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

No provocante filme O Discreto Charme da Burguesia (1972), o cineasta espanhol Luís Buñuel intrigava o espectador com um personagem prosaico saído de uma republiqueta sul-americana. Esse fantasioso país chamava-se Miranda. O diplomata, Don Rafael, protagonizado por Fernando Rey, é o acabado exemplo da hipocrisia, do nacionalismo vazio e da falta de preocupação para com o interesse público. Fingia ser um moralista. Criticava veementemente o consumo de drogas, ainda que as negociasse. Tinha medo da polícia. Don Rafael simboliza o imaginário latino-americano corrupto, especialmente por conta de suas ligações políticas. É uma caricatura emblemática. Há exageros (muitos), admitamos. No entanto, o apelo ficcional de Luís Buñuel representa uma realidade assustadora, que nos compete combater.

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No contexto de vários instrumentos de combate contra essa odiosa figura (o corrupto), a Organização dos Estados Americanos discutiu e aprovou uma Convenção, em 1996. Denominada "Convenção Interamericana contra a Corrupção", trata-se de um modelo regional que revela tendências que se verificam na Europa (especialmente a Convenção contra a Corrupção envolvendo a funcionários dos Estados membros da União Europeia, 1997), bem como na África (Convenção da União Africana para a Prevenção e Combate à Corrupção, 2003). Formalmente adotada em Caracas (em 1996) a Convenção foi ratificada por 33 Estados. Em vigor internacionalmente desde 1997, ela foi internalizada no Brasil por intermédio do Decreto Legislativo n. 152 (2002), seguido pela promulgação, em forma de Decreto do Presidente da República (n. 5.687). É direito válido, vincula, comanda e exige adesão.

Tanto ou mais quanto o conteúdo normativo da Convenção chama a atenção o conjunto de justificativas que empolgaram o acordo. Tem-se um documento que espelha um conjunto seríssimo de preocupações. Redigidas em forma de "considerandos", as motivações do pacto revelam as apreensões que o tema da corrupção provocava à época, e que persistem na atualidade. Mais do que um registro de uma inquietação regional, as motivações da Convenção fixam uma agenda de trabalho e um paradigma de interpretação.

Reconheceu-se que "a corrupção solapa a legitimidade das instituições públicas", o que revelava uma disfunção nas democracias formais, nas quais o voto seria mero procedimento com data (nem sempre) marcada. O combate à manipulação do processo eleitoral, como causa e também como resultado de práticas corruptas, é o ponto de partida para uma mudança de paradigmas.

Afirmou-se que a corrupção é um atentado à "sociedade, a ordem moral e a justiça". A corrupção mostra-se como um agente de desestabilização da ordem moral. Subverte as instituições, corroendo uma ordem calcada em valores que a América recebeu da tradição ocidental, fundamentada na ética do respeito ao próximo e ao bem comum. A justiça, nesse contexto, pode não alcançar os problemas de estrutura, conformando-se em discutir questões de forma, empregando e reproduzindo esquemas de distribuição do fruto da rapina da coisa pública. Nesse sentido, afirmam os redatores da Convenção, a corrupção de fato hostiliza o desenvolvimento integral dos povos. É um problema latente a reclamar solução, que é sempre urgente.

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Reafirmam-se os valores da democracia representativa. O bom andamento do modelo, que a Convenção condiciona à estabilidade, a paz e ao desenvolvimento regional, predica no combate incansável às formas possíveis e imaginárias de corrupção. Há uma preocupação recorrente para com a ação de servidores públicos, ao que se pode acrescentar que não se pode falar em corruptos em um contexto no qual se tenha corruptores. A venda de facilidades, cujo preço é estratosférico, varia na razão direta das dificuldades, resultando no emperramento dos serviços públicos, que se tornam um fardo e um problema insolúvel. O combate à corrupção, lê-se na Convenção, reforça as instituições democráticas e as distorções econômicas. A leniência para com suas abomináveis práticas vicia a gestão pública e, ainda na tábua de valores da Convenção, mostra-se como instrumento de deterioração da moral social.

A Convenção proclama que a corrupção e o crime organizado se aproximam, dividindo uma mesma finalidade. O criminoso e o corrupto compartilham a falta de escrúpulos. Há um convencimento da necessidade de que se conscientizem as populações dos países vinculados pela Convenção em relação à gravidade do problema e do conjunto de esforços para o enfrentamento da questão. A Convenção de algum modo conclama para um esforço de prevenção e de luta. A ainda mais assustadora internacionalização da ação dos grupos de corrupção (que a Convenção nomina de transcendência internacional) exige ação coordenada, exige cooperação, e ao Estado cabe a tarefa de dirigir os esforços.

Registrou-se a necessidade de adoção de instrumentos internacionais de combate à corrupção. Demandam-se medidas firmes e adequadas. Há uma preocupação mais localizada para com servidores públicos (ou quem quer que exerça função pública), com fortíssima indicação para excussão de todos os bens obtidos por via da corrupção. Acrescenta-se o problema do tráfico de entorpecentes, que a história revela endêmica e permanente no espaço latino-americano. Um peso histórico que demanda permanente enfrentamento. Teme-se pelo bom andamento das atividades comerciais e financeiras legítimas, ao que eu acrescentaria gravíssimas disfunções concorrenciais, pautadas pelo trânsito não controlado do dinheiro gerado na ilicitude.

A impunidade (que revela uma justiça viciada) deve ser erradicada pela ação estatal, que não prescinde de modelos eficientes de colaboração. A prevenção, a detecção, a punição e a erradicação da corrupção são os objetivos que fomentam a Convenção dos Estados Americanos no combate a esse mal de tempos imemoriais. Passados vinte e cinco anos de sua adoção, a Convenção Interamericana contra a Corrupção é (ainda) um documento atualíssimo, fundamentado em razões necessárias e suficientes para a inibição da ação dos tipos de Don Rafael, o corrupto do mencionado filme de Luís Buñuel.

*Liziane Paixão Silva Oliveira, doutora em Direito pela Universitè Aix-Marseille 3, França. Professora titular do Programa de Mestrado e Doutorado do CEUB (Brasília) e da UNIT (Aracaju)

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Este artigo faz parte de uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac), com publicação periódica. Acesse aqui todos os artigos.

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