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Entre a ciência e a ciência do direito no enfrentamento da covid-19

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Por André Portugal
Atualização:
André Portugal. FOTO: DIVULGAÇÃO  

Uma das grandes virtudes da ciência está no diálogo franco, aberto e criterioso que ela pressupõe. Falar de ciência, afinal, é falar de uma esfera crítica, marcada por conjecturas e refutações entre teorias contrárias, em que deve prevalecer aquela que trouxer a melhor evidência empírica. Toda afirmação ou teoria com pretensão de verdade deve se submeter a esse método científico: se ela for verdadeira, os fatos o demonstrarão, ao menos até que surja alguma nova refutação, baseada em nova evidência. A não ser em autoengano, não há autoridade ou autoritarismo que possa conformar os fatos à sua vontade.

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Por isso é que entre entusiastas da "terra plana" e cientistas atualmente obrigados a reafirmar o formato arredondado do planeta não é possível estabelecer qualquer equiparação, como se se tratasse de dois lados de uma mesma moeda. As coisas devem chamadas pelo seu nome: não há meras opiniões diversas; um dos lados está simplesmente errado. Comprovadamente errado, já que a hipótese da terra plana foi testada e cientificamente rechaçada - há vários séculos.

A despeito do ambiente notadamente anticientífico vivenciado em todo o mundo, a pandemia da covid-19 parece ter despertado a grande maioria dos cidadãos para a importância da ciência para a sobrevivência mesma de qualquer sociedade. Não à toa, têm sido várias - e de todos os lados - as críticas à postura adotada pelo Presidente Jair Bolsonaro, que contrariou epidemiologistas de todo o mundo, além de recomendações de seu próprio Ministro da Saúde, e incentivar manifestações, reiterando, naturalmente sem evidências, que a pandemia não passaria de histeria sustentada em puros interesses econômicos. A sociedade brasileira, ao menos sua grande maioria, parece concordar que a solução de uma epidemia deve passar por especialistas em saúde, que têm o conhecimento científico necessário para enfrentar esse cenário desafiador.

Mas o desafio não é somente das ciências biológicas. É que, uma vez estabelecida cientificamente a gravidade da pandemia, passa-se à etapa de implementação de medidas que o Estado precisa adotar para combate-la. E, em uma sociedade multicêntrica e democrática, toda medida deve obedecer a critérios de legitimidade constitucional e, portanto, jurídica. Ciência, Política e Direito são, todos eles, sistemas sociais com racionalidade e função próprias, a conviverem tão harmonicamente quanto possível. Em termos práticos: a constatação científica, por exemplo, no sentido de que uma determinada medida seria plenamente eficaz para o combate à pandemia pode ser, a despeito disso, juridicamente ilegítima, por violar direitos fundamentais e não simplesmente restringi-los de maneira proporcional. E, não passando nesse teste de legitimidade, o direito proíbe que ela seja adotada.

O desafio à ciência do direito nasce de uma constatação relevante, mas pouco considerada, sobre o sistema jurídico: ele não tem como prever, de modo taxativo e explícito, uma solução pronta para todos os casos que lhe apareçam. Em outras palavras: não está escrita nas pedras uma lista de medidas de que o Estado pode se valer, em seu exercício de poder de polícia, para coibir a pandemia da covid-19 e proteger a saúde pública. Certo é que o poder de polícia, essa prerrogativa de que o Estado pode se valer para, em nome da proteção do interesse público, restringir direitos fundamentais, sobretudo a liberdade, não é ilimitado.

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Cabe, portanto, à ciência do direito constitucional e administrativo aferir a legitimidade de cada medida proposta pelos governos federal, estaduais e municipais, especialmente porque o provável agravamento da pandemia tenderá a servir de incentivo para medidas cada vez mais restritivas.

Muitas medidas já foram propostas para combate à covid-19 e, logo, para a proteção da saúde pública. Há medidas que determinam o isolamento de indivíduos com sintomas do vírus, como há medidas que suspendem a atividades em escolas privadas. No Rio de Janeiro, anunciou-se, também, que algumas praias seriam interditadas, e vários municípios têm proibido eventos ou reuniões em que possa haver aglomeração de pessoas. É provável que, nos próximos dias, seja determinada a quarentena geral. Essas medidas são proporcionais? Como se estabelecer um limite para as restrições impostas pelo Estado?

Esse teste de legitimidade não pode envolver argumentações vazias e retóricas, pois se trata, afinal, de restrição a direitos fundamentais que são o termômetro democrático de qualquer civilização. Por essa razão, o exercício do poder de polícia pelo Estado é limitado pelo que, no Direito, chamamos de máxima ou regra da proporcionalidade.

Toda medida estatal que se propõe a restringir direitos fundamentais deve ter um objetivo em mente. E o primeiro aspecto a ser avaliado é, precisamente, a legitimidade desse objetivo. Confirmada a sua legitimidade, passa-se à aferição da proporcionalidade da medida, em um teste com três etapas, cada uma com uma pergunta a ser respondida.

É preciso confirmar se a medida proposta é (i) adequada (isto é, se ela fomenta o fim a que se propõe - no caso das medidas de combate à covid-19, a proteção da saúde pública) -, (ii) necessária (ou seja, se há alguma outra medida, menos restritiva, que fomente esse fim com a mesma eficácia) e, por fim, se ela é (iii) proporcional em sentido estrito (aqui, deve-se balancear o direito protegido pela medida restritiva com os outros direitos fundamentais envolvidos)[1].

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Analisemos, para ficar com um exemplo, o caso da interdição das praias, decretada pelo governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel.

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As duas primeiras etapas, como se vê, são o ponto de interconexão entre o direito e a ciência. O direito deve ouvir o que as evidências têm a dizer sobre a gravidade da epidemia e sobre as medidas necessárias para combatê-la. A ciência, e não o juiz, pode falar com propriedade a esse respeito.

É especialmente relevante, aqui, o consenso científico, com respaldo da OMS e das experiências de Japão e Singapura, no sentido de que a pandemia é grave, potencialmente fatal e altamente contagiosa, de modo que a aglomeração de pessoas comprovadamente proporciona a sua disseminação. Em síntese: se possível, qualquer exposição ao contato humano, especialmente em grandes proporções, deve ser evitada.

A medida, portanto, é adequada, já que interditar as praias implica em evitar a aglomeração de um grupo expressivo de pessoas e, por consequência, em protegê-las do contágio. Ao mesmo tempo, já que todas as evidências indicam que o contato em grande escala é causador da pandemia, é difícil, como têm reiterado os cientistas, imaginar outra medida que não restrinja esse direito e tenha a mesma eficácia na proteção da saúde pública, que é o direito cuja proteção se pretende com a medida. A medida, assim, também passa no teste de necessidade.

A terceira e última etapa, o teste de proporcionalidade em sentido estrito, cuida de trazer a questão para a perspectiva propriamente do direito. Isto é, é aqui que o direito afere a legitimidade das soluções oferecidas por outros sistemas sociais - no caso, a ciência. E é aqui que se encontram os grandes desafios da ciência do direito.

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Nessa etapa, devemos analisar se as restrições ao direito fundamental - no caso, a liberdade de ir e vir - são justificadas pela proteção que a medida oferece ao outro direito fundamental em jogo, a saber, a saúde pública. Algumas perguntas adicionais que devemos responder: qual o grau de restrição à liberdade promovido com a medida estatal? Qual a importância atribuída pelo nosso sistema jurídico à saúde pública, direito que a medida pretende proteger?

Ensaio as respostas. Trata-se, aqui, de restrição de grau médio à liberdade, já que os cidadãos apenas não poderiam frequentar as praias, mas ainda poderiam circular pela cidade, e porque, pressupõe-se, a interdição teria tempo claramente determinável, não sendo ad eternum. A liberdade, em síntese, não seria propriamente comprometida. Por outro lado, a saúde pública é direito ao qual o nosso sistema atribuiu especial relevância (art. 6º, CF) e que, segundo especialistas, poderia ser gravemente comprometido com a inércia do Estado. Afinal, prevê-se número elevado de mortes caso as pessoas continuem mantendo o contato que atualmente mantêm.

Mantidas essas condições, portanto, a medida passa no teste de proporcionalidade.

Imagine-se, agora, que a pandemia se agrava e alguma autoridade com viés autoritário propõe, com base em recomendações científicas, que pacientes detectados com o vírus sejam encarcerados e completamente afastados de qualquer contato humano, até que sejam curados. Ou que se determine a completa paralisação das atividades econômicas, até que seja criada uma vacina para a covid-19, o que pode levar mais de ano.

Os exemplos hipotéticos podem ser vários, mais ainda quando se está diante de um governo federal de caráter explicitamente autoritário, e eles demonstram que a sujeição de toda medida restritiva de direitos ao teste da proporcionalidade é, mais do que escrutínio saudável de legitimidade do agir do Estado, um passo necessário para que também a ciência do direito ofereça caminhos para enfrentar essa pandemia.

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[1] Para uma análise mais pormenorizada, ver ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2011; SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2011; PORTUGAL, André. Decisão Judicial e Racionalidade: Crítica a Ronald Dworkin. Porto Alegre: SAFe, 2017.

*André Portugal é advogado, sócio do Klein Portugal Advogados Associados, professor do Law Experience do FAE Centro Universitário e mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra

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