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100 anos de proibicionismo: a evolução da guerra aos pretos e pobres

Por Athos Vieira
Atualização:
Athos Vieira. Foto: Divulgação

O dia 6 de julho de 2021 marca os cem anos da primeira legislação nacional para drogas no Brasil. Foi nesse dia que, em 1921, o presidente Epitácio Pessôa assinou a primeira legislação brasileira que passava a restringir o comércio de algumas substâncias. A maconha havia sido proibida em algumas cidades através de seus códigos de posturas municipais sendo o do Rio de Janeiro, de 1830, o mais antigo a reprimir o consumo de maconha. Apesar do histórico, a maconha não foi incluída nessa primeira lei de drogas, o decreto 4.924 de 1921. Somente a cocaína, a heroína, o ópio e seus derivados passaram a ter seu comércio restrito, além do álcool, que não foi proibido, porém passou a punir, com penas diferenciadas, comerciantes e usuários que desrespeitassem algumas regras como, por exemplo, vender para menores de 21 anos ou apresentar-se embriagado em público.

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O projeto apresentado em 1920 pelo senador pelo Distrito Federal, José Mettelo Júnior, previa punição também para usuários de substâncias químicas, mas que foi retirada após o debate legislativo no qual foi vencedora a tese de que, se o projeto fosse aprovado da forma como fora apresentado, estes usuários seriam duplamente punidos, pelo vício e pela lei. A lei, entretanto, manteve punições para usuários de álcool, o que permitiu à polícia perseguir a população negra e pobre sob a acusação de "apresentar-se publicamente em estado de embriaguez", punido com multa, ou "embriagar-se por hábito", punido com internação em estabelecimento correcional por até um ano. Lima Barreto foi o caso mais notório desse controle sobre os corpos negros a partir do consumo de álcool.

A grande transformação da aplicação do proibicionismo no Brasil aconteceu durante a Ditadura Militar. Esse período foi marcado por uma crescente paranóia entre os militares que identificaram como ameaças externas os novos hábitos urbanos, dentre eles, o consumo de drogas. Na mentalidade militar, movimentos de liberação feminina, contracultura juvenil e desagregação familiar eram associados a uma intenção comunista de desestabilização das sociedades ocidentais da qual o Brasil era parte. Assim, as autoridades militares identificaram o combate ao tráfico e ao consumo de drogas como uma tarefa tão central na defesa do Estado quanto o combate ao terrorismo.

Os anos finais da ditadura militar foram marcados pelo surgimento da maior facção criminosa do estado do Rio de Janeiro. Inicialmente formado por ladrões de bancos e carros-fortes, o grupo identificado como Falange Vermelha pelo diretor do presídio da Ilha Grande passou a se organizar e a tornar os espaços de favelas, antes utilizados como esconderijo, como entreposto para o comércio ilegal de entorpecentes. Com o fim da guerra fria, a ameaça à sociedade deixava de ser associada ao perigo comunista, representado por jovens de classe média, e passava a se materializar na figura do traficante negro e jovem baseado nas favelas. As políticas repressivas levadas a cabo nas décadas seguintes, longe de enfraquecer o poder e a presença da facção rebatizada para Comando Vermelho, a fortaleceu e, após a fragmentação entre suas lideranças, deu início a uma guerra fratricida que faz do Rio de Janeiro uma cidade com persistentes índices de letalidades somente vistos em regiões conflagradas.

Dentro deste cenário, quando o debate sobre a atual Lei de Drogas (11.343/06) foi colocado, esperava-se que ela retirasse das malhas do sistema criminal o usuário enquanto endurecia a pena para o tráfico, que teve a pena mínima aumentada de três para cinco anos e foi tornado inafiançável. Ainda que essa lei tenha estabelecido um sistema nacional para orientar políticas públicas sobre drogas, prevendo, por exemplo, tratamento para usuários que precisassem de auxílio pelo SUS ou em instituições particulares, ela apresentou um efeito colateral nefasto: permitiu um encarceramento massivo de pessoas negras e periféricas, independente da quantidade encontrada pela polícia. Isso se deu devido à falta de critérios objetivos que diferenciassem usuários de traficantes. O resultado, como os números brutos demonstram e alguns estudos discutem, foi um aumento vertiginoso na população carcerária contribuindo diretamente para a superlotação das cadeias brasileiras.

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Hoje, após quinze anos de promulgação da Nova Lei de Drogas, ela tem sido massivamente aplicada de forma a escancarar o racismo estrutural da sociedade brasileira. A atuação policial sobre o varejo das drogas prende todos os dias jovens de periferia enquadrando-os como traficantes, independente da quantidade ou circunstância em que são presos. O Ministério Público não questiona estas prisões e apresenta denúncia com base nos relatos policiais que, por sua vez, são confirmadas em juízo levando-se em conta tão somente o local e o perfil dos presos. Após um século de uma política que se mostrou incapaz para impedir a circulação de drogas na sociedade e meio século de prisões arbitrárias que se intensificou com a atual legislação, pesando desproporcionalmente sobre populações periféricas, cabe à sociedade perguntar se é este o caminho que devemos continuar seguindo. Como temos demonstrado no projeto Drogas: Quanto Custa Proibir, os custos desta política pesam enormemente no bolso do contribuinte, porém, o custo imensurável continua sendo o de comunidades, famílias e vidas destroçadas sem que qualquer objetivo positivo seja alcançado.

*Athos Vieira, historiador (UFRJ), doutor em Sociologia (IESP-UERJ) e coordenador do projeto Drogas, Quanto Custa Poribir (CESeC)

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