Clarissa Pacheco
02 de março de 2022 | 17h59
Um post no Instagram da deputada federal Bia Kicis (PSL-DF) engana ao associar uma diretriz de tratamento para covid-19, disponível nos Estados Unidos para pacientes já infectados e que correm o risco de desenvolver quadros graves da doença, com o chamado tratamento precoce, defendido no Brasil por grupos antivacina, apesar de sua ineficácia comprovada contra a covid-19. A parlamentar compartilhou um tuíte do Centro de Controle de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, junto com a tradução do texto em português, acompanhado de uma legenda: “O tempo é o senhor da razão”.
Mesmo sem mencionar diretamente o tratamento precoce ou o chamado ‘kit covid’, é possível perceber pelos comentários que este foi o entendimento das pessoas que interagiram com a postagem, que acumula quase 40 mil curtidas no Instagram. Para estas pessoas, o tuíte é um sinal por parte do CDC de que o tratamento precoce é eficaz e deve ser iniciado imediatamente, o que não é verdade. Questionado pelo Estadão Verifica, o CDC compartilhou o mesmo link que aparece no tuíte original, com orientações sobre como as pessoas devem proceder quando estiverem com covid-19.
O CDC publicou o tuíte no dia 11 de fevereiro. É um card com o seguinte texto: “Se você testar positivo para a covid-19 e estiver em risco de ficar muito doente, entre em contato com um profissional de saúde imediatamente para determinar se você pode ser elegível para tratamento. Não demore, o tratamento deve ser iniciado nos primeiros dias para ser eficaz” (tradução livre). Em seguida, o órgão compartilha um link para que as pessoas obtenham mais informações a respeito deste tratamento.
If you test positive for COVID-19 & are at risk of becoming very sick, contact a health professional right away to determine if you may be eligible for treatment. Don’t delay, treatment must be started within the first few days to be effective.
More: https://t.co/vqxrQrXHSi. pic.twitter.com/eY0Lbb48P3
— CDC (@CDCgov) February 11, 2022
Diferentemente do que insinua a deputada brasileira, o órgão estadunidense não se refere a um tratamento precoce com medicamentos ineficazes para combater a covid-19, como ivermectina, cloroquina e hidroxicloroquina, e sim a uma diretriz de tratamento para pessoas que testaram positivo para a covid-19 e que se enquadram em uma lista de condições médicas que as expõem ao alto risco de progressão da doença, como câncer, diabetes, doenças renal, hepática e pulmonar crônicas, fibrose cística, problemas cardíacos, entre outros. Para elas, há uma lista de remédios aprovados emergencialmente, em geral anticorpos monoclonais e medicamentos antivirais de uso oral, mas que precisam ser receitados por um médico.
Responsável por autorizar o uso emergencial de medicamentos e vacinas contra a covid-19, a FDA, agência americana de regulamentação de remédios, informou em nota que a postagem do CDC se refere a “como esses medicamentos devem ser tomados o mais rápido possível após resultados positivos do teste viral para SARS-CoV-2”, sem mencionar o uso profilático, ou seja, para prevenir a doença.
A deputada foi procurada para falar sobre a postagem, mas não respondeu até a publicação deste texto.
Segundo o CDC, pacientes que não precisam de internação, ou seja, que seguem o curso da doença fora do hospital, poderão receber recomendações médicas para aliviar os sintomas da covid-19 e melhorar as defesas naturais do corpo, o que inclui tomar medicamentos como paracetamol ou ibuprofeno para reduzir a febre, beber água ou receber fluidos intravenosos para manter a hidratação do corpo e descansar para ajudar o organismo a combater o vírus.
Já os pacientes que possuem algumas condições de saúde com potencial para aumentar o risco de piora no quadro de covid-19 podem estar elegíveis para outro tratamento – e é sobre eles que o tuíte do CDC fala. Neste caso, a diretriz é coordenada pelo Instituto Nacional de Saúde (NIH, na sigla em inglês), com os medicamentos aprovados pela FDA.
Para estas pessoas, é possível que médicos recomendem o tratamento com anticorpos monoclonais, proteínas produzidas em laboratório que têm a capacidade de ajudar o sistema imunológico a reconhecer o vírus e combatê-lo de forma eficaz. Outro tratamento possível é o uso de medicamentos antivirais de uso oral – eles atacam partes específicas do SARS-CoV-2 e ajudam a reduzir a multiplicação e disseminação do vírus pelo organismo.
Atualmente, a variante Ômicron é dominante nas dez regiões do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos. Sabendo que alguns dos anticorpos monoclonais e antivirais autorizados não são eficazes contra a cepa, o NIH atualizou a declaração do Painel de Diretrizes de Tratamento da Covid-19 recomendando o uso intravenoso do remdesivir por três dias, associado a um anticorpo monoclonal específico, o sotrovimabe, em alguns casos, que devem ser, é claro, avaliados por um médico. A declaração, com a lista de prioridades para adoção de cada um dos tratamentos, está disponível no site oficial do NIH.
No dia 1º de fevereiro de 2022, o NIH adicionou uma recomendação sobre prevenção à infecção pelo coronavírus. Contudo, mais uma vez, ela não inclui medicamentos como ivermectina, cloroquina, hidroxicloroquina e azitromicina, nem está disponível para toda a população. De acordo com o material publicado no site oficial do Instituto, a recomendação é a vacinação, o mais breve possível, para todos que são elegíveis.
Uma associação de dois anticorpos monoclonais – o tixagevimabe e o cilgavimabe – pode ser aplicada de forma intravenosa e como profilaxia pré-exposição em adultos e adolescentes maiores de 12 anos e com mais de 40 quilos, que não foram infectados com o coronavírus e não tiveram contato recente com pessoas com a doença. Mas, para isso, é preciso que ele se enquadrem em pelo menos uma de duas situações:
O NIH deixa claro que o uso associado dos dois anticorpos monoclonais “não é um substituto para a vacinação contra a covid-19 e não deve ser usado em indivíduos não vacinados para os quais a vacinação é recomendada e que se espera ter uma resposta adequada”.
Logo após um parágrafo com informações similares ao conteúdo do tuíte, há no site do CDC um alerta sobre a necessidade de que as pessoas conversem com um médico antes de adotarem qualquer tipo de tratamento. “Pessoas foram gravemente prejudicadas e até morreram depois de tomar produtos não aprovados para uso no tratamento ou prevenção da covid-19, até mesmo produtos aprovados ou prescritos para outros usos. Converse com seu médico sobre qual opção pode ser melhor para você”, diz o texto.
De acordo com o NIH, há relatos de estudos in vitro que sugerem que a ivermectina demonstrou inibir a replicação do SARS-CoV-2 em culturas de células, mas não há nenhum estudo com ensaio clínico que tenha relatado benefício do medicamento em pacientes com covid-19. “Estudos farmacocinéticos e farmacodinâmicos sugerem que atingir as concentrações plasmáticas necessárias para a eficácia antiviral detectada in vitro exigiria a administração de doses até 100 vezes superiores às aprovadas para uso em humanos”, diz o NIH.
Por isso, não há ainda recomendação contra ou a favor do uso da ivermectina contra a covid-19, sendo necessários resultados de ensaios clínicos “com potência adequada, bem projetados e bem conduzidos para fornecer orientações mais específicas e baseadas em evidências sobre o papel da ivermectina no tratamento da covid-19”.
Já sobre a cloroquina, a hidroxicloroquina e ainda a azitromicina, o NIH informa que “não recomenda” o uso “para o tratamento de covid-19 em pacientes hospitalizados e em pacientes não hospitalizados”. Na justificativa, o órgão cita a “falta de benefício observado nos ensaios clínicos randomizados” e acrescenta que “embora os ensaios clínicos em andamento ainda estejam avaliando o uso de cloroquina, hidroxicloroquina e azitromicina em pacientes ambulatoriais, os dados existentes sugerem que é improvável que sejam identificados benefícios clínicos para esses agentes”. O NIH ainda cita a toxicidade dos medicamentos e os efeitos adversos, que incluem arritmia e até morte.
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