Prefeitura de Sorocaba divulga 'estudo' sem critérios científicos para defender 'tratamento precoce'

Após repercussão negativa, administração municipal apagou postagem no Instagram em que defendia uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra covid-19

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Por Victor Pinheiro
Atualização:

A prefeitura de Sorocaba divulgou em seu site oficial nesta quarta-feira, 14, uma nota enganosa na qual afirma que um "estudo preliminar" conduzido pela Secretaria Municipal da Saúde aponta 99% de eficácia do chamado tratamento precoce contra a covid-19. Mais tarde, a administração municipal voltou atrás e disse que os dados apresentados não foram obtidos em um estudo científico, e sim em um "monitoramento telefônico". A prefeitura sorocabana apagou a postagem no Instagram em que divulgava o "estudo" e alterou o comunicado oficial para chamá-lo de "levantamento".

 Foto: Estadão

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De qualquer forma, os dados reunidos pela prefeitura não seguem os padrões científicos adequados para atestar os benefícios e a segurança dos medicamentos de "tratamento precoce" no combate à doença. O comunicado do afirmava que foi aplicado um protocolo com ivermectina e azitromicina a 123 pacientes da rede municipal de saúde e, após 10 dias, somente um indivíduo do grupo morreu. O quadro clínico dos participantes foi monitorado por meio de um questionário, com informações sobre o uso dos medicamentos; fatores de risco e melhora clínica. 

A médica infectologista da Unicamp Raquel Stucchi destaca, no entanto, que os dados não são válidos para confirmar o impacto das substâncias no quadro clínico dos pacientes. "[O levantamento] não diz nada. É apenas propaganda política e falsa", avalia. 

Segundo a especialista, cerca de 85% dos pacientes de covid-19 se recuperam da doença sem a necessidade de intervenção médica e a melhor maneira para verificar possíveis benefícios dos medicamentos é por meio de estudos clínicos randomizados bem estruturados. 

Chamada original da nota da Prefeitura de Sorocaba sobre o estudo preliminar com o protocolo do 'tratamento precoce no município'. (Reprodução/Prefeitura de Sorocaba) Foto: Estadão

Esse tipo de pesquisa conta com diversos critérios, como regras de seleção de voluntários, para diminuir a possibilidade de interferência de fatores externos nos resultados ou de que os dados sejam fruto do acaso. A prefeitura de Sorocaba, por outro lado, não esclarece quais os parâmetros usados no recrutamento dos pacientes.

O comunicado da prefeitura de Sorocaba afirma que o levantamento encontrou uma taxa de letalidade de 0,81% entre os pacientes monitorados, que usaram o "tratamento precoce". Segundo o governo municipal, o índice de letalidade da população em geral é de 2,7%. Raquel Stucchi cita vícios de análise na comparação entre esses dois números. "O estudo analisa só pacientes com quadros leves, ambulatoriais", pontua. "A taxa de letalidade do município engloba todos os pacientes. Para comparar, seria necessário analisar a letalidade dos outros (casos) ambulatoriais que não fizeram uso da medicação".

Em nota, o Sindicato dos Médicos de Sorocaba e Cidades da Região criticou o comunicado da prefeitura. A entidade afirmou que o levantamento "não pode ser levado em consideração, pois foi feito de forma preliminar e com amostragem muito baixa". "A Prefeitura de Sorocaba comete um grande erro ao divulgar à população um estudo preliminar e sem credibilidade científica, especialmente em um momento tão crítico da pandemia", diz o sindicato. 

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A OAB/Sorocaba enviou um ofício ao prefeito de Sorocaba, Rodrigo Manga (Republicanos), solicitando as fontes de informação do estudo e a metodologia aplicada no levantamento.

'Não é estudo'

Questionada se a prefeitura de Sorocaba empregou alguma metodologia para minimizar possíveis vieses nos resultados do levantamento, a assessoria de comunicação do município afirmou que a pesquisa "não se trata de um estudo científico. Trata-se de um monitoramento telefônico realizado pela Secretaria da Saúde com pacientes com sintomas da covid-19, após 10 dias do início do tratamento".

Diante da repercussão negativa do comunicado, a prefeitura de Sorocaba alterou o conteúdo da nota. O título original da notícia "Estudo preliminar aponta 99% de eficácia do tratamento precoce" foi alterado para "Levantamento preliminar aponta excelentes resultados entre pacientes monitorados com sintomas da covid-19 que fizeram tratamento precoce em Sorocaba".

Além disso, uma publicação no Instagram que contava com o título original e registrava mais de mil e duzentas curtidas, até a tarde desta quarta-feira, foi excluída do . Posteriormente, a prefeitura fez uma nova publicação com alterações.

"A Prefeitura de Sorocaba publica novamente este post sobre levantamento preliminar acerca do tratamento precoce, de forma que as dúvidas geradas pela chamada anterior possam ser esclarecidas", justificou a administração municipal.

As evidências sobre ivermectina e azitromicina

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Não há, até o momento, evidências científicas confiáveis que comprovem os benefícios e a segurança da ivermectina e da azitromicina em qualquer estágio ou prevenção da covid-19. Em março, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou um comunicado em que desaconselha a administração da ivermectina para tratar a doença, uma vez que as evidências disponíveis são "inconclusivas". 

Mesmo sem eficácia comprovada, vendas de ivermectina aumentaram 557% em 2020, comparado ao volume no ano anterior. Automedicação é perigosa. Foto: Gerard Julien/ AFP

O painel de evidências da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), por sua vez, indica que a azitromicina provavelmente não reduz o tempo de melhora de sintomas, nem previne mortes e necessidade de ventilação mecânica. Um estudo realizado pela Universidade de Oxford e publicado na revista Lancet sugere que o antibiótico não é eficaz para aliviar os sinais clínicos no início dos sintomas.

Estudo Lancet

Vale ressaltar que faltam dados de segurança sobre os protocolos dessas substâncias no contexto da covid-19. Especialistas já alertaram ao Estadão Verifica que a ivermectina é um remédio seguro para combater algumas infecções parasitárias, mas as prescrições do remédio para tratamento da covidvariam e a segurança do produto em doses superiores às previstas na bula e em combinação com outros medicamentos é incerta. 

A FDA, agência reguladora dos EUA, destaca que a overdose de ivermectina pode ser fatal.

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