Não há estudos que comprovem que cúrcuma ajuda a combater covid-19

Apesar de ser uma planta fitoterápica reconhecida pela Anvisa e usada no tratamento de algumas enfermidades, ainda não há pesquisas que atestem benefício contra coronavírus

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Por Projeto Comprova
Atualização:

Esta checagem foi produzida por jornalistas da coalizão do Comprova. Leia mais sobre nossa parceria aqui.

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  • Conteúdo verificado: Texto publicado no Instagram e no Twitter, no qual um médico indica que as pessoas comprem a cúrcuma em lojas de produtos naturais para ajudar a combater a covid, pois, de acordo com ele, já existiriam vários estudos a respeito disso. Ele ainda afirma que a planta tem potencial anti-inflamatório e "fator protetor". Por fim, o médico indica a ingestão de 1,5 g todo dia.

Ao contrário do que afirma um médico no Instagram e no Twitter, não há estudos que comprovem que a cúrcuma, uma planta originária do sudeste da Ásia, possa ajudar a combater o coronavírus. A cúrcuma (Curcuma longa L) é reconhecida como fitoterápica pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e é utilizada tradicionalmente para combater algumas enfermidades, mas as pesquisas com a planta para casos de covid-19 ainda estão nas fases iniciais.

 

Além disso, até o momento, não há nenhum medicamento ou produto, com indicação das autoridades sanitárias, que possa ser usado no chamado "tratamento precoce". O médico responsável pelas postagens foi procurado pelo Comprova por e-mail, porém não deu retorno. As postagens que ele fez sobre a cúrcuma já não estão mais disponíveis nos perfis do Instagram e do Twitter.

Como verificamos?

Para obter mais informações sobre o uso de cúrcuma e as suas propriedades, o Comprova consultou documentos oficiais do Ministério da Saúde e da Anvisa, como uma monografia de 2015 que relaciona estudos feitos com a planta e sua utilização para fins medicinais.

Monografia cúrcuma

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Para a verificação, também foram entrevistados especialistas: Cristiano Augusto Ballus, doutor em Ciência dos Alimentos; Carlos Takeshi Hotta, doutor em Ciência das Plantas pela University of Cambridge; Maria Angélica Fiut, presidente da Associação Brasileira de Fitoterapia (ABFIT) e Juliana Bello Baron Maurer, professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Por fim, entramos em contato com o médico que postou o texto, que já foi apagado das redes sociais.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 9 de julho de 2021.

Verificação

O que é cúrcuma

A cúrcuma (Curcuma longa L), segundo monografia elaborada pelo Ministério da Saúde e Anvisa em 2015, é uma planta milenar originária do sudeste da Ásia, encontrada principalmente nas encostas de morros das florestas tropicais da Índia.

Também conhecida como "açafrão", "gengibre-dourado" e "açafrão-da-terra", foi introduzida no Brasil e é cultivada ou encontrada como subespontânea (definição em Botânica para vegetais que se adaptam a regiões para onde foram levados) em vários estados.

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O documento aponta que a cúrcuma é utilizada tradicionalmente para diversas enfermidades, sendo os rizomas - tipo de caule que cresce horizontalmente - a principal parte da planta empregada nas preparações.

Confira alguns dos principais usos do rizoma da planta no gráfico abaixo:

Uso medicamentoso

Maria Angélica Fiut, nutricionista, fitoterapeuta e presidente da ABFIT, afirma que a cúrcuma tem uso medicamentoso e apresenta potencial anti-inflamatório. "Ela acaba trabalhando nos marcadores inflamatórios que temos no corpo, reduzindo o processo inflamatório. Tem medicamento, inclusive, pronto da indústria, que é de cúrcuma, como o Motore (da Aché)."

O professor Cristiano Augusto Ballus, do Departamento de Tecnologia e Ciência dos Alimentos da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), pontua que há diversas publicações indicando benefícios da cúrcuma - sobretudo de um de seus compostos, a curcumina - porém carecem de mais estudos antes de apontá-la como benéfica para a covid.

Doutor em Ciência de Alimentos, ele relata que um artigo de revisão publicado recentemente no periódico Journal of Functional Foods resume algumas das evidências científicas relacionadas a ensaios com extratos de cúrcuma, ou, então, com aplicação direta da curcumina. Na publicação, está descrita a possibilidade de a planta atuar na redução do risco de doenças cardiovasculares e diabetes, e ainda reporta, entre outras propriedades, melhora na atividade anti-inflamatória e na antioxidante.

"Essas evidências são muito interessantes e servem como base para a realização de mais estudos com número maior de participantes e monitorando diversas características metabólicas. Alguns ensaios foram realizados somente in vitro, ou seja, em laboratório, e posteriormente podem não ser significativos quando testados in vivo (com modelos animais ou com humanos)", alerta Ballus.

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Essa também é uma preocupação do professor Carlos Takeshi Hotta, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP). Ele é enfático ao observar que a cúrcuma é uma especiaria que muitos vinculam a efeitos anti-inflamatórios, apesar de não haver um estudo em grande escala para atestar essa indicação, demonstrando que não há consenso sobre o uso terapêutico da planta.

Eficácia contra a covid

Na postagem verificada, o autor sugere o uso de cúrcuma para o combate à covid-19, embora, até o momento, não haja nenhum medicamento ou produto, com indicação das autoridades sanitárias, que possa ser usado no chamado "tratamento precoce." Ao contrário, o Comprova já registrou, em mais de uma publicação, que em relação a algumas substâncias, inclusive, a ineficácia foi confirmada.

Por outro lado, há estudos sendo conduzidos sobre o uso da cúrcuma nos casos de covid. Mais uma vez, assim como a análise sobre outras propriedades da planta, ainda incipientes.

Maria Angélica Fiut afirma que há muitas pesquisas sendo desenvolvidas, devido ao potencial anti-inflamatório, porém estão todas em estágios iniciais, a maioria in vitro (laboratório). Não há ainda uma validação ou eficácia comprovada.

"Não dá para afirmar que a cúrcuma combate a covid. Conhecemos muito pouco da doença, então, não podemos afirmar que algo possa ser usado contra ela com toda a certeza", adverte.

O professor Carlos Takeshi Hotta afirma que há pesquisas sobre o uso da cúrcuma, associadas à piperina (substância presente na pimenta-do-reino), para avaliar seus efeitos em relação à doença, porém pequenas demais para se alcançar um resultado conclusivo.

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"Esse estudo envolveu humanos - 70 pacientes tratados com cúrcuma e piperina, 70 não tratados. É muito pouco. Este é o grande problema da cúrcuma: há muitos artigos científicos propagando a sua eficácia, mas poucos dados de qualidade apoiando-a", constata.

Com doutorado em Ciência das Plantas pela University of Cambridge, Carlos Hotta observa ainda que o princípio ativo da cúrcuma é poucoabsorvido pelo organismo e rapidamente eliminado. Isso, segundo o professor, já é um indício de que a ação da cúrcuma no corpo é improvável. "Muitos tentam minimizar essa condição combinando com outras substâncias e, por isso, usam a piperina", aponta.

Uma das pesquisas para investigar os possíveis efeitos da cúrcuma contra a covid-19 é da UFPR, coordenada pela professorJuliana Bello Baron Maurer, do Departamento de Bioquímica e Biologia Molecular e do Núcleo Paranaense de Pesquisa Científica e Educacional de Plantas Medicinais (NUPPLAMED).

A pesquisa se baseou, afirma a professora, nas propriedades antivirais e anti-inflamatórias da planta, que já eram conhecidas antes da covid. O estudo partiu da pergunta: será que fitoterápicos e/ou seus produtos na forma de nanoformulações podem ser uma alternativa terapêutica para enfrentamento da covid-19 e síndromes respiratórias agudas graves?

No entanto, Juliana Maurer destaca que estão finalizando a fase 1- e ainda são necessárias outras duas etapas antes de se chegar a algum resultado conclusivo sobre a possibilidade de a cúrcuma servir no combate à doença. O que há são evidências que as espécies selecionadas - a Salvia officinalis L (sálvia) também está sendo estudada - podem ser uma alternativa promissora no desenvolvimento das formas terapêuticas.

"É uma irresponsabilidade de um profissional indicar um produto, seja natural ou não, para a covid. Além disso, temos muito conhecimento sobre a cúrcuma e, mesmo sendo um produto natural, tem contraindicações", frisa Juliana Maurer.

Ela destaca ainda que a maioria dos estudos avalia o composto curcumina, e, "apesar de a cúrcuma ser uma planta fantástica, a gente absorve uma quantidade pequena, tendo um efeito mais a longo prazo. No caso de infecções agudas, sabe-se que os fitoterápicos não são a forma mais adequada para tratamento porque os sintomas aparecem muito rapidamente."

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Dosagem e contraindicações

A cúrcuma faz parte da lista de drogas vegetais inseridas no formulário de fitoterápicos da Anvisa - documento que traz os padrões de qualidade para a produção de medicamentos fitoterápicos. É recomendado o uso de diferentes quantidades, conforme o problema a ser tratado. Em outro documento da Anvisa, de 2010, é indicado o uso de rizomas por meio de decocção (técnica na qual o material vegetal é fervido, coado e depois consumido na forma de chá): 1,5 g (3 colheres de café) em 150 mL (1 xícara de chá).

Fitoterápicos Anvisa

Anvisa - 2010

No formulário de fitoterápicos, também há uma lista de contraindicações, como, por exemplo, para casos de obstrução dos dutos biliares, de úlcera gastroduodenal e durante a gestação, lactação e menores de 18 anos.

Independentemente da dosagem, Carlos Hotta reforça que é muito arriscado à saúde utilizar substâncias sem evidências científicas fortes, no caso a cúrcuma, para combater uma doença como a covid-19.

Cristiano Ballus acrescenta que a população precisa compreender que, no momento, não há "tratamento precoce" para a covid-19. "Alguns medicamentos para tratamento foram autorizados pela Anvisa, porém normalmente para os casos graves que estão hospitalizados. Sendo assim, a melhor maneira de prevenir o contágio é mantendo as recomendações de uso de máscara, limpeza frequente das mãos com água e sabão ou álcool em gel e distanciamento social, evitando aglomerações."

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Quem é o autor do post?

Marcos Falcão Farias Monte é médico com registro no Conselho Regional de Medicina do Estado de Alagoas, sob o número 8608-AL. A primeira inscrição na entidade é de 15 de dezembro de 2020. Não há especialidades registradas.

Em seu perfil nas redes sociais, ele descreve que faz telemedicina e oferece tratamento imediato e ainda se apresenta como ativista político. Marcos Falcão já teve outro conteúdo verificado pelo Comprova, no qual afirmava que a ivermectina era um remédio "enviado por Deus" e seguro em altas doses, o que se mostrou enganoso - nenhum medicamento é seguro fora das doses estipuladas

As postagens que fez sobre a cúrcuma já não estão mais disponíveis nos perfis do Instagram e do Twitter. Em uma das páginas que o médico mantém no Instagram, ele informa que o perfil principal foi banido pela rede social e menciona que também sofreu sanção do YouTube, mas não diz por quais publicações recebeu as punições e atribui à influência que exerce sobre seus seguidores.

Marcos Falcão foi procurado pelo Comprova por e-mail, porém, não deu retorno.

Por que investigamos?

Em sua quarta fase, o Comprova checa conteúdos suspeitos sobre o governo federal ou a pandemia que tenham atingido alto grau de viralização. A postagem do médico chegou a ter 6,5 mil interações.

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Conteúdos imprecisos sobre medicamentos "milagrosos" que supostamente combatem o coronavírus podem fazer com que a população acredite e use produtos indevidamente, podendo agravar o quadro de infecção ou levar a outros problemas de saúde. Não existe "tratamento precoce" para a covid-19 e a desinformação oferece risco porque, se as pessoas acreditarem, deixam de adotar os cuidados necessários para se prevenir.

O Comprova já demonstrou, por exemplo, ser enganoso que o uso de hidroxicloroquina seja eficaz contra a covid-19 e que a Universidade de Oxford tenha encontrado 'fortes indícios' da eficácia da ivermectina para a doença. Até o momento, as medidas defendidas pelas autoridades sanitárias continuam sendo a vacinação, que também já foi alvo de boatos e desinformação, o uso de máscarasdistanciamento social e higienização frequente das mãos.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

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