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Médico recomenda 'tratamento precoce' sem eficácia comprovada contra covid-19 em vídeo viral

Infectologista Ricardo Zimerman indica remédios como a ivermectina, nitazoxanida e bromexina, mas não há provas que esses medicamentos funcionem contra o novo coronavírus

Por Victor Pinheiro
Atualização:

É enganoso um vídeo em que o médico infectologista Ricardo Ariel Zimerman afirma que medicamentos para o 'tratamento precoce' da covid-19 já têm eficácia comprovada. A entrevista concedida a uma emissora de rádio foi compartilhada pelo empresário bolsonarista Luciano Hang, que também defendeu o uso preventivo de medicações contra a doença. 

Zimerman cita uma série de remédios, como a ivermectina, nitazoxanida e bromexina, e faz referências à hidroxicloroquina. Diferentemente do que insinua o médico, ainda não há estudos que de fato comprovem a eficácia ou a segurança dessas substâncias no controle da covid-19. 

 Foto: Estadão

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Uma nota conjunta da Associação Médica Brasileira (AMB) e a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) divulgada em janeiro aponta que "as melhores evidências científicas demonstram que nenhuma medicação tem eficácia na prevenção ou no tratamento precoce para a covid-19, até o presente momento". 

Nota conjunta - AMB e SBI

As instituições pontuam que pesquisas clínicas ainda estão em curso. "Atualmente, as principais sociedades médicas e organismos internacionais de saúde pública não recomendam o tratamento preventivo ou precoce com medicamentos, incluindo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)", afirma o documento.

Contradição 

Embora Zimerman se apresente nas redes sociais como conselheiro científico da Organização Panamericana de Saúde (Opas), órgão associado à Organização Mundial da Saúde (OMS), suas afirmações na entrevista contrariam documentos da própria entidade. 

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A Opas informou que o infectologista não fala em nome da organização: "Ricardo Ariel Zimerman recebeu um contrato de serviços para um serviço pontual, com cláusula informando que não é um trabalhador da Opas, não fala em nome da organização nem pode usar o nome da Opas para fins pessoais".

A entidade acrescentou que seu posicionamento sobre os medicamentos citados por Zimerman está em um sumário de evidências de terapias para a covid, atualizado em 14 de janeiro. Este documento indica que ainda são necessários mais estudos para comprovar os benefícios dos medicamentos citados pelo médico. A lista contém 70 substâncias. 

Evidências Opas

Sobre a ivermectina, o documento afirma que, apesar de seis estudos clínicos randomizados controlados sugerirem o potencial benefício do medicamento, a qualidade das evidências é muito baixa e mais pesquisas devem ser feitas para confirmar ou refutar esses resultados. 

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos publicaram, também em janeiro, uma orientação que diz haver dados insuficientes para recomendar ou descartar o uso da ivermectina para o tratamento da covid-19. "A maioria dos estudos reportados até o momento têm informações incompletas e limitações metodológicas significativas, que dificultam a exclusão de vieses", diz o órgão americano

Entre essas limitações estão o baixo número de participantes dos estudos, a variação de doses aplicadas, a descrição precária do grau de gravidade da doença dos participantes, a combinação com diferentes medicamentos, entre outras. Lacunas como essas foram apontadas por especialistas ao projeto Comprova em verificação que desmentiu que uma revisão de médicos americanos ateste a eficácia da ivermectina

"São necessários resultados de ensaios clínicos bem desenhados e bem conduzidos para fornecer orientações mais específicas e baseadas em evidências sobre o papel da ivermectina para o tratamento da covid-19", diz o NIH. 

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Cloroquina e hidroxicloroquina, sem eficácia comprovada, são usados por alguns médicos contra a covid-19 Foto: Gerard Julien/ AFP

A nitazoxanida

A nitazoxanida, outro medicamento citado por Zimerman, também aparece no relatório de evidências da Opas. O documento cita um estudo brasileiro que foi apresentado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, em uma cerimônia no Palácio do Planalto em maio. Em entrevista ao Estadão, a autora principal da pesquisa negou que o estudo represente uma sugestão de uso do remédio em pacientes. 

Segundo a Opas, ainda há incertezas sobre a eficácia e segurança do medicamento como terapia para covid-19. Em reportagem recente do Estadão, a FQM Farmoquímica, detentora do registro do medicamento, afirmou que a empresa recomenda o uso da substância somente com indicação médica e disse que concentra esforços na execução e conclusão das pesquisas clínicas com o medicamento. 

Outra substância citada por Zimerman, a bromexina, é aplicada para o tratamento de bronquite e outros problemas respiratórios. O compilado de evidências da Opas cita dois estudos clínicos randomizados que apontam potenciais benefícios do medicamento contra a covid-19. Porém, as evidências são classificadas pela entidade com o grau mais baixo de confiabilidade. 

Entre as limitações apontadas, está o fato de que ambas as pesquisas não foram conduzidas com metodologia duplo cego -- isto é, quando nem os aplicadores, nem os pacientes sabem se estão tomando a substância ativa ou placebo. 

Sobre a hidroxicloroquina e a cloroquina, o documento da Opas aponta que evidências de um grau moderado de certeza apontam que as drogas provavelmente não têm potencial para reduzir significativamente o tempo dos sintomas da covid-19. Além disso, não há conclusões sobre o uso preventivo das drogas. 

"[A hidroxicloroquina] quando usada profilaticamente em pessoas expostas à covid-19, pode não reduzir significativamente o risco de infecção. No entanto, a certeza das evidências é baixa devido ao risco de vieses e imprecisão", aponta o relatório. 

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Já o painel de evidência dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH) diz que, na falta de evidências que confirmem a eficácia desses medicamentos, a recomendação é contrária ao uso da cloroquina e da hidroxicloroquina, com ou sem a azitromicina, para pacientes hospitalizados, não hospitalizados ou na prevenção da doença. 

Painel de evidência NIH

O tratamento precoce do Ministério da Saúde

No vídeo, Zimerman discorre ainda sobre a orientação inicial do Ministério da Saúde de que pacientes procurassem ajuda médica somente a partir do agravamento dos sintomas. Essa recomendação era feita no início da pandemia, quando o médico Luiz Henrique Mandetta era ministro. Em julho, no entanto, a pasta mudou as diretrizes e agora indica que pacientes devem buscar auxílio médico já na incidência dos primeiros sintomas.

Segundo o médico infectologista Fábio Gaudenzi, presidente a Associação Catarinense de Infectologia, o monitoramento dos sintomas desde o início da doença é fundamental. Ele recomenda que pacientes busquem avaliação e orientação médica mesmo sem apresentar sinais graves da infecção.

"A partir dessa avaliação serão feitos exames de diagnóstico da covid ou avaliação de uma comorbidade do paciente que eventualmente pode estar descompensada. Além disso, é importante passar a orientação para o paciente de como monitorar os sintomas em casa e os períodos de possível agravamento", afirmou o médico.

De acordo com o especialista, na piora de algum sintoma o recomendado é procurar ajuda médica imediatamente. "São pontos importantes que ainda não conhecíamos no começo da pandemia", pontuou.

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O Centro de Controle de Doenças Infecciosas dos Estados Unidos (CDC) recomenda que pessoas com sintomas leves da covid-19 estejam em contato com um médico enquanto monitoram o desenvolvimento da doença em casa. No caso de sinais mais graves, a instituição indica que o paciente deve procurar atendimento de emergência.

Por que estudos bem desenhados são tão importantes?

De acordo com Gaudenzi, a condução de estudos bem desenhados, com metodologia apropriada e número adequado de participantes é essencial para atestar a eficácia de medicamentos contra a covid-19, uma vez que grande parte dos pacientes se recuperam sem a necessidade de uma intervenção médica. 

Ao passo que os tratamentos testados em uma pesquisa podem levar a resultados próximos entre os grupos que recebem o remédio e voluntários submetidos a substâncias inativas (placebo), essa característica da covid-19 dificulta ainda mais para cientistas entenderem os efeitos do medicamento e eliminarem vieses. 

Neste caso, aponta o especialista, são necessários muitos estudos devidamente conduzidos para comprovar ou refutar o benefício de uma substância.

Outro lado

Procurado pelo Estadão, Zimerman não retornou.

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