Boato distorce entrevista para alegar que Lula mandou mensagem cifrada sobre fraude ao TSE

Não há qualquer indício de que fala do petista a rádio gaúcha tenha sido direcionada ao presidente do tribunal, nem que ele tenha sugerido manipulação de votos nas eleições de 2022

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Por Samuel Lima
Atualização:

Um vídeo de um canal bolsonarista viralizou no Facebook ao distorcer informações de uma entrevista do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em agosto do ano passado, para uma rádio gaúcha. O autor da peça alega que o petista teria gravado uma "mensagem subliminar" para o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, em alusão a uma suposta estratégia de fraude nas eleições de 2022. O conteúdo mostrado não sustenta nada disso.

 Foto: Estadão

A entrevista em questão foi concedida para a rádio ABC, de Novo Hamburgo (RS), em 10 de agosto de 2021, e disponibilizada publicamente no canal oficial de Lula no YouTube. O recorte específico que é citado na peça aparece a partir de 29 minutos de gravação e também foi compartilhado, no dia seguinte, nas redes sociais do político.

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Um dos "códigos" que Lula teria emitido a Barroso durante a entrevista, segundo o canal bolsonarista, seria o de que o atual presidente, Jair Bolsonaro (PL), "vai perder as eleições, inclusive no Estado do Rio Grande do Sul". O argumento é de que essa afirmação deixa "mais do que na cara a manipulação" do pleito porque o petista até "setoriza" os locais onde receberá mais votos do que o adversário.

Essa afirmação não procede, em primeiro lugar, pois não é novidade pré-candidatos demonstrarem confiança nas eleições como forma de engajar a militância. Neste caso específico, os levantamentos dos institutos de pesquisa mais relevantes, como Ipec e Datafolha, indicam que Lula realmente está na frente nas intenções de voto para presidente.

Já o fato de ele mencionar especificamente o Rio Grande do Sul ocorre porque a entrevista era para um veículo de Novo Hamburgo, cidade que fica na região metropolitana do Estado.

Voto eletrônico

Outro "código" alegado no vídeo teria aparecido quando Lula critica a tentativa de adoção de "votinho de papel" -- em referência à "PEC do voto impresso", projeto de emenda à Constituição arquivado na Câmara dos Deputados que defendia a impressão de um comprovante de voto a ser depositado em uma urna acoplada ao equipamento eletrônico.

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Mais uma vez, não há qualquer evidência de que a fala de Lula tenha sido direcionada ao ministro Luís Roberto Barroso, ainda que este também tenha se mostrado contrário ao projeto da deputada federal Bia Kicis (PSL-DF). Barroso justificou essa postura citando o fato de que nunca houve comprovação de fraude nas urnas eletrônicas desde que elas passaram a ser usadas no Brasil, em 1996, e prevendo que o registro impresso poderia trazer mais suspeitas de irregularidades e judicialização de resultados.

Além da interpretação duvidosa da entrevista, o conteúdo ainda engana ao sugerir que as eleições não são transparentes, pois o voto eletrônico não seria auditável, e que já ocorreram fraudes anteriormente -- algo que nem o presidente Jair Bolsonaro foi capaz de provar ao longo do mandato, sendo desmentido até mesmo por peritos da Polícia Federal em inquérito na Justiça. 

O TSE estabelece uma série de procedimentos de auditoria antes e durante as eleições. Nos testes públicos de segurança, por exemplo, especialistas procuram vulnerabilidades no dispositivo e apontam eventuais brechas para aprimorar o sistema. O código-fonte das urnas é apresentado previamente a partidos políticos, pesquisadores e peritos de outros órgãos públicos antes de ser assinado digitalmente e lacrado.

No dia do pleito, cada seção eleitoral emite a "zerésima" provando que não há registro de votos computados antes da abertura dos portões. A Justiça Eleitoral também sorteia urnas e promove uma eleição simulada e gravada, além de disponibilizar outros para verificação pública, a fim de comprovar, por amostragem, que os equipamentos estão funcionando corretamente. 

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Por fim, o sistema eletrônico permite a recontagem dos votos através dos boletins de urna, gerados individualmente quando a votação é encerrada em cada seção eleitoral. O envio dos dados é feito através de uma rede privada do TSE, que apura os votos. O resultado oficial então pode ser confrontado com os boletins de cada localidade.

Eleições dos EUA

O autor do vídeo investe ainda em uma narrativa, desprovida de provas, de que o ex-presidente Donald Trump teria perdido as eleições nos Estados Unidos por conta de fraudes e que Lula estaria anunciando que "o que fizeram lá, vão fazer aqui". O petista apenas sustenta, na entrevista, uma opinião de que a intenção de Bolsonaro ao promover a pauta do voto impresso no Brasil é tumultuar as eleições, como fez Trump em 2020. 

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Apesar da ofensiva judicial dos republicanos e da falsa campanha que resultou na invasão do Capitólio por ativistas de extrema-direita, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos não encontrou provas de nenhum caso de irregularidade de importância suficiente para reverter a vitória do democrata Joe Biden. 

Um exemplo nesse sentido é uma auditoria solicitada pelo próprio Partido Republicano no condado de Maricopa, no Arizona, um dos locais decisivos em 2020. A recontagem de votos confirmou a derrota de Trump, com pouca diferença para o primeiro resultado -- que inclusive havia tirado votos de Biden, e não o contrário, por conta de erros na apuração.

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Agências federais que supervisionam o pleito declararam que as eleições foram limpas, assim como funcionários responsáveis pela votação em todos os 50 estados americanos, de acordo com um levantamento do jornal The New York Times. Esses colégios eleitorais contam com secretários democratas e republicanos.

O canal de desinformação ainda reproduz um boato comum entre apoiadores de Trump de que votos de pessoas mortas foram contabilizados para garantir a vitória de Biden. A história ganhou força depois que uma lista de 10 mil nomes do Estado de Michigan foi divulgada nas redes.

Como apurou a BBC através de 31 nomes selecionados aleatoriamente, o documento combina dados de eleitores autênticos com o de pessoas falecidas com o mesmo nome, mês e ano de nascimento para produzir coincidências falsas, ainda que o dado possa estar correto em uma minoria de casos.

Vale lembrar que a maior parte das seções eleitorais nos Estados Unidos utiliza cédulas de papel para votação, e que aquelas que adotam o voto eletrônico oferecem equipamentos diferentes daqueles desenvolvidos no Brasil, como já esclareceu o Estadão Verifica em outras checagens. Os votos também podem ser depositados pelos correios, uma prática que se intensificou nas eleições de 2020 por conta da pandemia de covid-19.

Uma das versões do vídeo checado teve 9,6 mil compartilhamentos e 60 mil visualizações no Facebook desde o final de janeiro. A peça, assinada por uma página chamada "Aliançados pelo Brasil", conta com características comuns a boatos -- entre elas tom alarmista, apelo a supostas mensagens e conspirações ocultas e troca de letras por números e outros caracteres na legenda, a fim de dificultar o monitoramento das plataformas contra desinformação.

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Este boato foi checado por aparecer entre os principais conteúdos suspeitos que circulam no Facebook. O Estadão Verifica tem acesso a uma lista de postagens potencialmente falsas e a dados sobre sua viralização em razão de uma parceria com a rede social. Quando nossas verificações constatam que uma informação é enganosa, o Facebook reduz o alcance de sua circulação. Usuários da rede social e administradores de páginas recebem notificações se tiverem publicado ou compartilhado postagens marcadas como falsas. Um aviso também é enviado a quem quiser postar um conteúdo que tiver sido sinalizado como inverídico anteriormente.

Um pré-requisito para participar da parceria com o Facebook  é obter certificação da International Fact Checking Network (IFCN), o que, no caso do Estadão Verifica, ocorreu em janeiro de 2019. A associação internacional de verificadores de fatos exige das entidades certificadas que assinem um código de princípios e assumam compromissos em cinco áreas:  apartidarismo e imparcialidade; transparência das fontes; transparência do financiamento e organização; transparência da metodologia; e política de correções aberta e honesta. O comprometimento com essas práticas promove mais equilíbrio e precisão no trabalho.

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