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Lula não tem conta no banco do Vaticano; falsa denúncia já foi contestada pela instituição

A fonte da informação foi uma entrevista no YouTube, de um canal boliviano, com um suposto diácono que já havia sido desmentido pelo Vaticano em 2019

Por Projeto Comprova
Atualização:

Esta checagem foi produzida por jornalistas da coalizão do Comprova. Leia mais sobre nossa parceria aqui.

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Conteúdo investigadoVídeo em tom de denúncia afirma que o ex-presidente Lula teria 250 milhões de euros escondidos no Banco do Vaticano. O autor do conteúdo exibe trecho de uma entrevista no YouTube com um homem que diz ser diácono e possuir documento mostrando os dados da conta do petista e de outros líderes da América Latina.

Onde foi publicado: Kwai e Facebook.

Conclusão do Comprova: É falso vídeo que circula nas redes sociais em que homem diz fazer uma denúncia e afirma que o ex-presidente e pré-candidato à presidência Luiz Inácio Lula da Silva (PT) teria 250 milhões de euros no Banco do Vaticano, cujo nome oficial é Istituto per le Opere di Religione (IOR) ou Instituto para as Obras de Religião, em português. O apresentador usa como fonte do conteúdo falso uma entrevista de um suposto diácono ao canal de uma apresentadora boliviana no YouTube. O vídeo foi publicado há dois anos.

O primeiro registro do tal clérigo fazendo acusações infundadas não só contra Lula como contra outros líderes da América Latina foi em um jornal colombiano, em janeiro de 2019. Na época, o Vaticano logo desmentiu o conteúdo. "Nenhuma das pessoas mencionadas (...) jamais teve uma conta bancária na IOR, nem tem atualmente uma, nem tem uma assinatura de delegação de contas a terceiros, nem teria - com base nas novas regras adotadas pelo Instituto - qualquer título para acessar qualquer operação lá. Os documentos apresentados como prova são falsos. A IOR se reserva o direito de tomar medidas legais"", disse Alessandro Gisotti, então diretor interino da Sala de Imprensa da Santa Sé. Procurada pelo Comprova, a assessoria de imprensa do petista também negou a informação.

Além disso, não há provas que confirmem a posição de diácono do homem que faz as supostas denúncias e os documentos apresentados por ele já foram verificados como falsos pela agência de checagem colombiana Colombia Check.

 

Falso, para o Comprova, é todo conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma falsidade.

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Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos de maior alcance nas redes sociais. No Facebook, o vídeo compartilhado em grupo bolsonarista teve 374 interações, entre comentários, curtidas e compartilhamentos até o dia 24 de junho. No Kwai, o conteúdo alcançou 1,5 mil interações.

O que diz o autor da publicação: O Comprova entrou em contato com o autor do vídeo verificado aqui e com os responsáveis pelas publicações no Kwai e no Facebook, mas não houve retorno até o fechamento desta verificação.

Como verificamos: A partir da busca no Google pelas palavras-chave "Lula" e "Banco do Vaticano", o Comprova encontrou diversas checagens sobre o tema de outras agências como Aos FatosLupa e Estadão Verifica. Assim, foi possível buscar o vídeo original da entrevista em que o suposto diácono acusa líderes da América Latina de manterem contas secretas no Banco do Vaticano.

O próximo passo foi verificar as informações a respeito do IOR, seu funcionamento e quem são os clientes do banco. Isso foi feito por meio de consultas ao site da instituição e ao relatório de atividades de 2021.

Relatório de atividades de 2021

O Comprova também reuniu dados sobre o homem que aparece no vídeo verificado, professor Emílio, apresentador da TV Nossa Senhora de Fátima.

Por fim, a equipe tentou contato, sem sucesso, com o Banco do Vaticano, a TV Nossa Senhora de Fátima, o professor Emílio, o suposto diácono Jorge Sonnante e o Arcebispado de Buenos Aires. A assessoria do ex-presidente Lula também foi procurada.

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O vídeo

"Denúncia. Lula teria EUR 250 milhões no Banco do Vaticano" começa o vídeo verificado aqui, de 4 minutos e 59 segundos. O homem que traz a falsa denúncia diz que é por isso que "você não vê foto do [papa] Francisco com Bolsonaro, mas vê com Lula, Dilma, Evo Morales e Maduro". Dirigindo-se ao presidente do Brasil, ele, que se apresenta como professor Emílio, da TV Nossa Senhora de Fátima, afirma "então, Bolsonaro, é por isso que você não recebe cartinha do papa quando você é operado nem a benção do Francisco, tá bom? Matamos a charada, tá?".

Depois de exibir um trecho de 19 segundos da entrevista com o suposto diácono (a entrevista completa, no Ahora con Roxana, tem pouco mais de uma hora; a parte de Lula é a partir dos 46 minutos e 33 segundos), o apresentador diz que, para as "pessoas de esquerda", a relação "nunca é por amizade, nunca é por fidelidade, é só dinheiro e corrupção". No final, ele pede que a Polícia Federal investigue o caso, com a Interpol e a Agência Central de Inteligência (CIA).

O professor Emílio, segundo o site da TV Nossa Senhora de Fátima, é professor e catequista. No LinkedIn, ele se apresenta como Emílio Carlos, "diretor no Apostolado de Evangelização Nossa Senhora de Fátima", em Taubaté, no interior paulista. Ainda nesta rede, ele afirma que "o apostolado evangeliza pela internet através da web TV Criança Católica e da web TV Nossa Senhora de Fátima".

Contas inexistentes

O trecho da entrevista usada no vídeo verificado aqui foi retirado do canal Ahora con Roxana no YouTube, com 10,3 mil inscritos. A apresentadora é Roxana Lizárraga, que, no Twitter, se descreve como "jornalista, advogada, política e guerreira da democracia e da liberdade de expressão". Entre 2019 e 2020, foi ministra das Comunicações da Bolívia - em um episódio que ficou conhecido, ameaçou jornalistas enquanto ocupava o cargo.

Em 2019, ela publicou em seu canal uma entrevista com Jorge Sonnante, apresentando-o como diácono. Na gravação, intitulada "Contas socialistas no Vaticano", ele mostra papéis que afirma serem documentos oficiais do Vaticano. O suposto diácono mostra os documentos como provas da existência de contas bancárias dos presidentes e ex-presidentes da América Latina Cristina Kirchner (presidente da Argentina de 2007 a 2015; atual vice), Juan Manuel Santos (Colômbia, de 2010 a 2018), Evo Morales (Bolívia, de 2006 a 2019) Rafael Correa (Equador, de 2007 a 2017), Raúl Castro (Cuba, de 2006 a 2018), Daniel Ortega (Nicarágua, de 1979 a 1990 e desde 2007), Nicolás Maduro (Venezuela, desde 2013) e Lula (Brasil, 2003 a 2011).

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No post verificado aqui, o homem que aparece no vídeo usa apenas o trecho em que Roxana e o entrevistado falam de Lula.

Antes de Roxana, a primeira reportagem sobre os documentos de Sonnante que comprovariam essas contas foi publicada pelo site colombiano El Expediente, em 9 de janeiro de 2019.

Porém, no mesmo mês, o Vaticano desmentiu as alegações. "Depois de verificar com as autoridades competentes, posso afirmar que nenhuma das pessoas mencionadas no artigo jamais teve uma conta bancária no IOR, nem a possui atualmente, nem possui assinaturas de delegados em nome de terceiros, nem teria algum título para realizar alguma operação", afirmou Alessandro Gisotti, então diretor interino da Sala de Imprensa da Santa Sé. "Os documentos apresentados como evidência são falsos. O IOR se reserva o direito de tomar medidas legais", terminava o comunicado oficial.

Outros casos

O conteúdo apresentado no canal Ahora com Roxana não foi o primeiro a afirmar que Lula tem fortunas em bancos fora do Brasil. Em 2018, por exemplo, o Comprova verificou um texto sobre o petista ser dono de uma poupança de US$ 108 milhões depositada em Luxemburgo - não havia nenhuma evidência do caso.

Procurada pela reportagem para comentar o post verificado aqui, sobre o Banco do Vaticano, a assessoria de imprensa de Lula também negou a informação. "O ex-presidente nunca teve conta nem no Banco do Vaticano nem em nenhum banco do exterior. Lula já foi extensamente investigado, já teve todos os seus sigilos fiscais e bancários quebrados e não foi encontrada nenhuma irregularidade", afirmou.

Banco do Vaticano

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Diferentemente do que o post insinua, não é qualquer pessoa que pode ter uma conta no Banco do Vaticano, fundado em 1942. Apenas instituições credenciadas à Santa Sé e entidades ou pessoas jurídicas ligadas ao Vaticano.

Como informa seu site, o IOR "realiza atividades financeiras autorizadas pela Autoridade de Supervisão e Informação Financeira (ASIF) e oferece os seguintes serviços: recebimento de depósitos, administração de ativos, determinadas funções de custódia, transferências internacionais de pagamentos por meio de bancos correspondentes e manutenção de contas de salários e pensões de funcionários da Santa Sé e do Estado da Cidade do Vaticano".

Ainda de acordo com a página, "a missão do instituto envolve assegurar a custódia e administração dos bens transferidos ou confiados ao instituto por pessoas físicas ou jurídicas, e destinados para obras de religião ou caridade".

No final de 2020, o Banco do Vaticano gerenciava cerca de 5 bilhões de euros (31 bilhões de reais, aproximadamente) em depósitos de clientes e administrava uma carteira de ativos de 649,9 milhões de euros (cerca de 4 bilhões de reais), segundo matéria do UOL.

Até o dia 31 de dezembro de 2021, o IOR tinha 14.519 clientes, divididos da seguinte forma: ordens religiosas (50%), departamentos da Cúria Romana, escritórios da Santa Sé e do Estado da Cidade do Vaticano e nunciaturas apostólicas - missões diplomáticas da Santa Sé - (23%), conferências episcopais, dioceses e paróquias (9%), cardeais, bispos e clero (8%), funcionários e aposentados do Vaticano (7%); fundações e outras entidades de Direito Canônico (3%). As informações constam no site da instituição.

Quem é Jorge Sonnante

O suposto diácono nasceu na cidade de Bahía Blanca, na Argentina. Ele tem 43 anos, é casado e tem duas filhas.

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Sonnante é presidente da União para o Partido da República da Argentina e, conforme consta no site do partido, já teria sido "membro da Secretaria de Estado na Santa Sé como conselheiro pontifício de vários papas e como analista de campo na área de inteligência".

Embora ele se apresente como diácono da Igreja Católica, não há provas que confirmem a função. Como mostrou a Agência Aos Fatos, documentos postados por Sonnante no Twitter que comprovariam seu trabalho na Cúria Romana de 2013 a 2015 têm ao menos dois erros. Em vez de "Segreteria di Stato", grafia correta do nome do órgão em italiano, o selo e o carimbo dizem: "Secretaria de Estado" e "Secretaria di Stato", respectivamente.

Além disso, Rodriguez Carballo, arcebispo espanhol que teria assinado o documento do suposto diácono em 12 de abril de 2013, só foi ordenado para o cargo em 18 de maio de 2013.

Sonnante também tem uma empresa de análise de informação e inteligência chamada Dark Falcon SRL e mantém uma plataforma online para divulgar conteúdos que, segundo ele, não são noticiados pela mídia. Por meio de seu site, Sonnante comercializa quatro itens: duas conferências, um equipamento de respiração "para o usuário sobreviver a qualquer ataque bacteriológico" e um livro escrito por ele, intitulado "Trump: a marca do anticristo".

O argentino já foi alvo de verificações em outros países como Colômbia e Bolívia.

Por que investigamos: O Comprova investiga conteúdos suspeitos sobre a pandemia de covid-19, políticas públicas do governo federal e as eleições presidenciais de 2022 que viralizaram nas redes sociais. O vídeo aqui verificado traz informações falsas a respeito de um pré-candidato ao Planalto que podem confundir e influenciar a decisão de voto dos eleitores.

Outras checagens sobre o tema: A mesma peça de desinformação já foi verificada pela Aos FatosAgência Lupa e Estadão Verifica. Além disso, os documentos utilizados pelo homem que aparece no vídeo foram comprovados como falsos pela agência de fact-checking colombiana Colombia Check.

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Em verificações anteriores envolvendo o ex-presidente Lula, o Comprova mostrou que post troca local de ato contra Lula para desacreditar pesquisas; que post engana ao omitir que protesto contra Lula em Bagé é de 2018; e que Lula não foi expulso de Niterói como afirma vídeo.

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