É falso que 'vídeo vazado' de campanha de Lula comprove fraude nas urnas em 2002

Gravação faz parte do documentário 'Entreatos', dirigido por João Moreira Salles e lançado em 2004; cenas mostram preparação para debate e não mencionam urnas eletrônicas

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Por Clarissa Pacheco
Atualização:

Um trecho do documentário Entreatos, do diretor João Moreira Salles, vem sendo compartilhado nas redes sociais fora de seu contexto original, para acusar Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de fraudar as urnas eletrônicas desde 2002, quando foi eleito presidente pela primeira vez. Na realidade, a cena do filme mostra simplesmente a campanha do petista em preparação para um debate que ocorreria na Rede Globo antes do primeiro turno das eleições. As urnas eletrônicas não são sequer citadas na conversa. Desde que o voto eletrônico foi implementado no Brasil, em 1996, não há registro de fraudes.

No Facebook e no TikTok, posts acrescentaram as inscrições "vídeo vazado", "estava tudo armado" e "as urnas estão sendo fraudadas desde 2002" sobre a cena do documentário, compartilhada com resolução ruim e áudio quase incompreensível. É possível ver que um homem mostra textos escritos em cartazes, mas não é possível ler o que diz o material. Mas o vídeo não foi vazado, nem prova fraudes em urnas eletrônicas.

 Foto: Estadão

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O documentário Entreatos foi gravado em 2002 e acompanhou os 32 dias que antecederam a vitória de Lula na campanha eleitoral daquele ano. As imagens que aparecem no post viral fazem parte do filme, que pode ser visto na Globoplay e também encontrado em DVD. A cena que os posts chamam de "vazada" aparece na íntegra a partir dos 31 minutos e 50 segundos e foi gravada no Hotel Sofitel, em São Paulo, a quatro dias da eleição de 2002.

Nas imagens originais do documentário, é possível ver o conteúdo dos cartazes afixados no quarto de hotel; eles não falam sobre urnas, mas sim sobre um debate organizado pela Rede Globo. Os equipamentos de votação também não são mencionados na conversa entre os integrantes da campanha petista.

O que aparece nos cartazes

O primeiro cartaz mostra a "Pauta da Reunião" e os responsáveis por cada item: "momento de hoje; regras do debate; estratégia do debate; postura do candidato". O segundo título é "Preparação" e, na sequência, aparecem os seguintes itens: "lista de perguntas para candidatos adversários; perguntas para o nosso candidato; e preparação temática". Quem mostra os itens no cartaz é Luiz Gushiken, membro da coordenação de campanha de Lula em 2002.

Cena do documentário Entreatos, de João Moreira Salles. Imagem: Reprodução/Globoplay Foto: Estadão

Os próximos cartazes falam sobre "Crise financeira" e "Postura dos candidatos adversários" - neste item, aparecem os nomes [José] Serra, [Anthony] Garotinho e Ciro [Gomes].

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Imagem: Reprodução/Globoplay Foto: Estadão

Outro cartaz indica "Objetivos de nosso candidato" e indicações sobre postura e a necessidade de consolidar um papel de liderança, seguido das seguintes características: "firmeza; coragem; espírito negociador; altivez; otimismo; planejador do futuro do país". Há também o que parecem ser três orientações sobre a postura de Lula: "sabe exercer autoridade; não ser irônico/arrogante; quase vitorioso, mas não eleito".

Imagem: Reprodução/Globoplay Foto: Estadão

Também se fala em "não assumir posição de ataque", "afirmar papel oposicionista", "reafirmar os pontos principais da 'Carta ao povo brasileiro'"; "demonstrar capacidade e conhecimento da realidade brasileira", "mostrar preocupação com o povo" e "demonstrar que é o único candidato capaz de unir o Brasil".

Imagem: Reprodução/Globoplay Foto: Estadão

Os últimos itens listados nos cartazes são referentes "Questão internacional": "Guerra no Iraque; Argentina; FARC; Relação com Fidel, Chaves; Mercosul; e Alca", além das "administrações petistas".

Imagem: Reprodução/Globoplay Foto: Estadão

O que é dito na conversa

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A partir de 32 minutos e 17 segundos de documentário, há uma voz de fundo mencionando o ex-ministro-chefe da Casa Civil José Dirceu, que está presente na reunião. Embora o ex-presidente não apareça ainda na imagem, é provavelmente a voz de Lula: "José Dirceu, a sua cadeira tá aqui. Eu vou tirar dois dias e vou sugerir que todo o comando da campanha viaje, para ninguém ficar exigindo ministro".

Em seguida, outra pessoa no ambiente diz: "Sexta, sábado e domingo e segunda, eu vou estar em Comandatuba...". Não é possível ver quem fala a frase, mas a sequência do diálogo sugere que a voz era de José Dirceu. Em seguida, o marqueteiro Duda Mendonça, que coordenou a campanha de Lula em 2002 e era baiano, sugere que Comandatuba, uma ilha no Sul da Bahia, não era um bom lugar. "Se vocês quiserem sumir e ninguém encontrar, eu tenho uma fazenda a 150 quilômetros de Salvador maravilhosa, com piscina, tudo bonito. Comandatuba é o maior buchicho da paróquia nessa época do ano".

As imagens do documentário passam, então, a mostrar uma conversa numa mesa do hotel. Entre os presentes estão Lula, José Dirceu, Duda Mendonça e o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega, que na época coordenava o grupo de economistas da campanha. José Dirceu, então, diz a Mantega que Fox [Vicent Fox, então presidente do México] queria conversar com Lula a respeito de uma informação que o mexicano tinha sobre o presidente à época, Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

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Imagem: Reprodução/Globoplay Foto: Estadão

Neste momento, Dirceu olha para a câmera e pergunta se está gravando. Duda Mendonça diz que sim, que é a equipe de João Moreira Salles, que está gravando um documentário com a autorização de Lula. Dirceu diz, então, que é melhor deixar para conversar depois, já que se trata de um assunto "altamente sigiloso". Dirceu afirma: "Eles são de confiança, mas não existe confiança absoluta porque a fita do Lula sobre Pelotas (vídeo em que o ex-presidente usa um termo considerado homofóbico) acabou na mão do nosso inimigo". Outra pessoa diz que as fitas são guardadas num cofre todos os dias, e Dirceu responde: "Vai nessa. Se você soubesse onde eu tô, se você soubesse o que eu tenho das outras campanhas, você não falaria isso. Gilberto Carvalho, para com isso, tem gente dentro da nossa campanha".

Ele conclui a fala rindo, enquanto a câmera passeia pelo ambiente e volta a Luiz Gushiken, que diz que Duda Mendonça tem cinco minutos para falar sobre a preparação para o debate. O marqueteiro afirma que Lula tem 60% de chance de não ganhar no primeiro turno e 40% de chance de ganhar e que o eleitor que ele precisa conquistar são os 3% ou 4% que pensam em votar nulo. Em seguida, ele explica as regras do debate que ocorreria na Rede Globo e a cena se encerra aos 36 minutos e 59 segundos, sem que as urnas fossem sequer mencionadas.

O diretor

Em novembro de 2004, após o lançamento do documentário, o diretor João Moreira Salles disse em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo que o filme "não foi feito com malícia". "O documentarista não tem o direito de ser desleal com seu personagem. Isso não significa filmar sempre a favor; significa apenas não filmar maliciosamente", declarou.

Ele chegou a dizer em entrevista que temia o impacto negativo do filme na imagem de Lula - quando o documentário foi lançado, Lula estava no segundo ano de seu primeiro mandato. "Os filmes abertos, como Entreatos, não ditam o sentido das suas cenas. Elas ficam abertas a interpretações de todo tipo: ingênuas, inteligentes, críticas, amargas, piedosas, selvagens. Todas são legítimas, mas elas não estão no filme. Pertencem mais a quem interpreta", disse Salles.

Não é a primeira vez que cenas do documentário são retiradas de contexto. Em uma passagem do filme, gravada em um avião, Lula critica uma tese de alguns intelectuais ligados ao MST que diziam que não era possível que o PT chegasse ao poder pela via eleitoral. O trecho que viralizou em vídeos no TikTok, no entanto, não mostra o contexto completo, em que Lula diz que essa é uma "tese absurda", com a qual ele não concorda.

As urnas eletrônicas, implantadas no Brasil em 1996, são constantemente alvo de ataques, sobretudo por grupos que defendem a adoção de um comprovante de voto impresso. No entanto, desde que foi adotado o voto eletrônico não há registros de fraude em processos eleitorais brasileiros. Diferente do que afirmam peças que atacam os equipamentos, eles são auditáveis.

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