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Frase sobre libertação de 'mil escravos' é falsamente atribuída à abolicionista Harriet Tubman

Historiadores desmentem ligação da frase com o símbolo da luta contra a escravidão nos EUA; Tubman resgatou cerca de 70 pessoas escravizadas no século 19, entre familiares e amigos

Por Alessandra Monnerat
Atualização:

É falso que a abolicionista americana Harriet Tubman tenha afirmado que libertou mil pessoas escravizadas e que libertaria outras mil "se eles soubessem que eram escravos". A frase com autoria errada foi publicada no Facebook no Dia da Consciência Negra e obteve mais de 17 mil compartilhamentos desde então.

A citação falsamente atribuída a Tubman circula desde os anos 1990, segundo a historiadora Kate Clifford Larson, autora de Bound for the Promised Land (Rumo à Terra Prometida), biografia da abolicionista. "Não há documentação nem base histórica para essa frase", afirma a estudiosa em seu site. 

 Foto: Estadão

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Ao site de fact-checking americano Politifact, que desmentiu a autoria da frase em 2019, Clifford Larson disse que a citação era "ridícula ao extremo". "É claro que pessoas escravizadas sabiam que eram escravizadas. Todas queriam ser livres", afirmou.

O site Africa Check, que também publicou uma checagem sobre o assunto em 2019, citou o historiador Caleb McDaniel para explicar por que a frase atribuída a Tubman é problemática. "Pessoas escravizadas resistiam à sua condição de inúmeras maneiras, grandes e pequenas", disse o professor da Rice University, nos Estados Unidos. 

"Se elas não foram capazes de alcançar a liberdade, não foi porque não a quisessem ou porque (como diz a falsa citação de Tubman) 'não sabiam que eram escravas'", continuou. "Foi porque existiam forças poderosas organizadas contra elas."

Outros historiadores comentaram à agência Associated Press, em 2018, que a citação não se parece com a forma de falar de Harriet. "Ela não era uma pessoa arrogante. Não é mesmo o tipo de linguagem de Tubman", afirmou Fergus Bordewich, autor do livro Bound for Canaan: The Underground Railroad and the War for the Soul of America (Rumo a Canaã: A Ferrovia Subterrânea e a Guerra pela Alma da América).

Vale mencionar ainda que Tubman não lia nem escrevia, o que faz com que seja desafiador atribuir a ela citações exatas.

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Quem foi Harriet Tubman

Harriet Tubman nasceu em 1822, em Maryland, nos Estados Unidos. Ela, os pais e os oito irmãos eram escravizados. Em 1849, Tubman conseguiu escapar para a liberdade, fugindo para o estado da Filadélfia. Tornou-se então operadora da chamada Ferrovia Subterrânea, uma rede de contatos e caminhos seguros para ajudar na fuga de escravizados.

É falso, no entanto, que ela tenha libertado "mil escravos", como afirma a frase viralizada. Na realidade, foram cerca de 70 familiares e amigos, resgatados em 13 diferentes viagens a Maryland. 

Segundo o Harriet Tubman Underground Railroad Byway -- instituto que promove visitas aos locais que a abolicionista percorreu -- há extensa documentação sobre as missões de resgate promovidas por Harriet. Calcula-se que ela tenha fornecido instruções para outras 70 pessoas que buscavam a liberdade e fugiram por conta própria. 

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Mitos sobre Harriet Tubman

Além de agir ativamente na libertação de pessoas escravizadas, Harriet era uma sufragista que militava pelos direitos das mulheres. Ela atuou como enfermeira, patrulheira e espiã durante a Guerra de Secessão Americana. Depois, Tubman transformou sua casa em um santuário para idosos, doentes e pessoas com deficiência.

Harriet se tornou um símbolo da luta contra a escravidão e, com o passar dos anos, foram incorporados vários mitos e exageros à sua história. Em um artigo de 2008 da Syracuse University, dos Estados Unidos, o historiador Milton Sernett comenta sobre a falta de informações precisas sobre a vida da abolicionista.

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"Me parece estranho que uma figura que foi um símbolo tão grande sofresse com a falta de informações históricas", disse. "Aos poucos, percebi que muito do que nós, americanos, pensávamos saber sobre Harriet Tubman não era derivado de uma boa pesquisa histórica, e sim da perpetuação de um mito maior do que a vida. O símbolo dominou a vida, ofuscou a pessoa histórica".

O professor lembra que, assim como Tubman, figuras como os ex-presidentes americanos George Washington e Abraham Lincoln tiveram suas biografias mitificadas. Sernett ressalta, no entanto, que corrigir imprecisões históricas sobre a vida da abolicionista não diminui o impacto de suas conquistas.

"Os valores humanísticos consagrados pela vida dela dialogam diretamente com os valores centrais do sistema americano -- essencialmente, se você tiver fé suficiente e lutar muito, poderá triunfar sobre a adversidade", comentou. "Ela exemplifica o que todos nós gostaríamos de ser."


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