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É falso que governador de Sergipe tenha publicado decreto para confiscar casas e abolir direito de propriedade privada

Postagens nas redes sociais distorcem dispositivo previsto na Constituição Federal que é meramente replicado em documento da gestão de Belivaldo Chagas (PSD) e permite a requisição de bens em caráter temporário em situações extremas

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Por Samuel Lima
Atualização:

Uma série de postagens enganosas em circulação nas redes sociais acusam o governador de Sergipe, Belivaldo Chagas (PSD), de ter "abolido o direito de propriedade" e permitido o "confisco de casas" no Estado por meio de um decreto de calamidade pública, assinado em 25 de março, em função da pandemia de covid-19. Os posts, no entanto, desinformam sobre um dispositivo que está previsto na Constituição Federal e que é meramente reproduzido no documento.

Postagens distorcem decreto de calamidade pública renovado pelo governo de Sergipe. Foto: Reprodução / Arte: Estadão

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O trecho que gerou a polêmica aparece no art. 3º do Decreto Nº. 40.798. Nele, o governo do Estado autoriza o poder público a "requisitar bens móveis e imóveis privados, serviços pessoais e utilização temporária de propriedade particular, desde que sejam estrita e efetivamente necessários a minorar o grave e iminente perigo público, observadas as demais formalidades legais". A medida tem validade de 180 dias a partir de 4 de abril.

O presidente do Instituto de Estudos Legislativos e Políticas Públicas (IELP) e professor de Direito do IDP, Raphael Sodré Cittadino, explica que esse artigo não atenta contra o direito à propriedade, nem autoriza o confisco de casas. Na verdade, é apenas uma referência a um instrumento conhecido no meio jurídico como requisição administrativa e que está previsto na Constituição Federal de 1988.

Na parte que trata dos direitos e garantias fundamentais, a Constituição estabelece, em seu art. 5º, que todos os brasileiros e estrangeiros residentes no País têm resguardado o direito inviolável "à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade". A seguir, são mencionados diversos termos que precisam ser observados.

A possibilidade de requisição administrativa é expressa então no inciso XXV. "No caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano", mostra a Carta.

"Existem situações em que o Estado não pode esperar constituir uma propriedade ou um instrumento para afastar o perigo público", explica Cittadino. "Ele precisa utilizar bens particulares que estão disponíveis e não há tempo para fazer o procedimento licitatório. Então, ele usa (esses bens e serviços privados) e depois indeniza em preço justo".

O advogado destaca que essa ação está relacionada com situações extremas e apresenta caráter temporário. A possibilidade é afastada assim que aquele evento que coloca em risco a sociedade deixa de estar presente. 

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"A requisição administrativa é uma exceção. A regra é o direito de propriedade", esclarece. "Em situações de perigo, de calamidade, é preciso proteger a coletividade. Entre o patrimônio e a vida, a escolha é pela vida. Essa é a ponderação que a Constituição, nesse inciso, faz. São situações muito características: guerra, perigo público iminente, se houve um deslizamento de uma encosta e você precisa utilizar um guindaste, por exemplo, e também na saúde, na questão sanitária."

Em um contexto de pandemia, o Estado pode seguir o que está disposto na legislação para requisitar a internação de pacientes em hospitais particulares ou garantir uma compra de equipamentos de proteção para profissionais de saúde, por exemplo -- entre outras situações fora da normalidade, mas que podem ser necessárias para evitar colapsos. 

Ainda assim, Cittadino observa que os governantes costumam negociar a compra de vagas e o fornecimento de materiais com o setor privado em vez de praticar esse tipo de decisão unilateral, que pode gerar contestações na Justiça.

"Os proprietários dos bens podem perfeitamente entrar com um mandado de segurança, inclusive preventivo, arguindo que estão respeitando o interesse da coletividade na comercialização, que não estão praticando nenhum tipo de sobrepreço, que todos os bens disponíveis para venda já estão comprometidos com instituições de saúde", observa o especialista. 

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Cittadino aponta que o simples fato de o instrumento ter sido mencionado no decreto de Sergipe não significa que o governo tem a intenção de praticar o instrumento indiscriminadamente e de forma arbitrária. "O poder público precisa ter uma justa causa para isso, não só pelo fato de estar na pandemia, mas por ser extremamente necessária para proteger a vida, a saúde e o coletivo", afirma.

Quando a requisição é feita sem uma justificativa coerente para a defesa do interesse público, a prática pode ser apontada como ilegal e inconstitucional pelo Judiciário. Os gestores podem ser responsabilizados, inclusive, dependendo da gravidade da conduta. 

"O confisco, que é entendido como esse ato arbitrário de tomada da propriedade particular, é algo absolutamente afastado pela nossa Constituição", explica o professor. "O governante não pode utilizar a requisição administrativa como subterfúgio para o confisco e pode responder com o afastamento de mandato por crime de usurpação ou de responsabilidade".

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Governo de Sergipe desmentiu a acusação

Em nota divulgada pelas redes sociais, o governo de Sergipe classificou como "inoportuna, fantasiosa e desleal" a publicação sobre o assunto, que teve origem em uma coluna do jornalista Augusto Nunes no portal R7 e ganhou impulso com memes na internet e um texto publicado pela revista online Oeste.

O Executivo estadual afirma que a requisição administrativa está prevista na Constituição e também foi mencionada anteriormente na Lei 13.979/20, assinada pelo presidente Jair Bolsonaro e aprovada pelo Congresso, em 6 de fevereiro de 2020. A gestão afirma que a norma aparece desde o primeiro decreto do Estado e não é "nem velha, nem nova, só repetição".

A legislação federal citada pelo governo de Sergipe dispõe sobre as medidas a serem adotadas diante da emergência de saúde pública causada pelo novo coronavírus. O art. 3º, inciso VII, estabelece a possibilidade de "requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa".

O Fato ou Fake, a Agência Lupa e o UOL Confere também desmentiram esse boato.

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