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'Denúncia' contra OMS é baseada em declarações infundadas de advogado alemão

Posts nas redes sociais se referem a ação coletiva de grupo da Alemanha sem atuação científica que espalha desinformação sobre exames RT-PCR

Por Victor Pinheiro
Atualização:

Uma série de publicações no Facebook afirmam que um "comitê alemão" denunciou a Organização Mundial da Saúde (OMS) por crimes contra a humanidade e fraudes na pandemia do novo coronavírus. As postagens, no entanto, se baseiam em declarações infundadas do advogado alemão Reiner Fuellmich, cujo vídeo foi retirado do YouTube por ferir normas de serviço da plataforma. 

O advogado diz representar o braço alemão do "Comitê Investigativo Corona". O grupo propõe apresentar uma ação coletiva contra a OMS e o virologista Christian Drosten, do Hospital Charité, de Berlim. Como aponta uma verificação do Comprova, o comitê não tem qualquer atuação científica e busca atrair a adesão de empresas e empreendedores para receber compensação financeira. 

 Foto: Estadão

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Ao contrário do que a postagem analisada sugere, a denúncia ainda não foi protocolada. Em seu site, o grupo alemão afirma que decidiu esperar até novembro para iniciar o processo, que pode ocorrer na Alemanha, Estados Unidos e Canadá. Para aderir à iniciativa, os interessados devem assinar um contrato com os advogados do comitê, que inclui cobranças de uma taxa fixa de US$ 800 e mais 10% de eventuais ganhos da causa.

RT-PCR são confiáveis

Um dos principais objetos da acusação elaborada pelo grupo de Fuellmich aponta que exames moleculares RT-PCR seriam ineficazes para detectar o novo coronavírus. Trata-se do teste laboratorial aplicado a partir de amostras das vias respiratórias do paciente coletadas com um cotonete. O exame é considerado padrão de referência pela OMS e é recomendado para diagnóstico nos estágios iniciais da covid-19. 

Fuellmich afirma que a técnica pode identificar fragmentos de moléculas e sinalizar apenas que o sistema imunológico da pessoa testada superou um resfriado comum no passado. O argumento enganoso é utilizado para sustentar a falsa ideia de que não existe uma pandemia. Ao Estadão Verifica, o professor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP) Carlos Frederico Menck explicou que essa concepção é equivocada.

Ele afirma que o RT-PCR é plenamente confiável para detectar se uma pessoa está infectada com o vírus da covid-19. Segundo o pesquisador, os exames moleculares voltados ao novo coronavírus analisam as sequências específicas do SARS-CoV-2 e não sofrem interferências de outros patógenos. Isso porque a técnica analisa as bases de nucleotídeos do RNA Viral. 

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"O vírus, por exemplo, tem cerca de 30 mil bases. A gente analisa, às vezes, 150 ou 250 dessas bases apenas. Isso basta porque elas são muito específicas", afirmou. Menck destaca ainda que a técnica já é utilizada há pelo menos 25 anos para diagnosticar quadros infecciosos. 

Estudos apontam excesso de mortes

O advogado alemão também faz afirmações insustentáveis de que não houve excesso de mortes durante a pandemia do novo coronavírus. O conceito de excesso de mortes se refere à diferença entre a quantidade de mortes naturais observadas em um período e os números esperados de óbitos nesse mesmo intervalo, calculado a partir de estatísticas de anos anteriores. 

Um estudo recentemente publicado na revista Nature Medicine analisou o excesso de mortes em 21 países entre a metade de fevereiro e maio de 2020. Os números de óbitos esperados consideraram os registros de 2010 a 2020. A pesquisa concluiu que houve 206 mil mortes adicionais, que não teriam acontecido sem a pandemia. 

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A Espanha apresentou a principal variação, com uma diferença de 38% entre os óbitos registrados e os esperados. Na Inglaterra e País de Gales foi detectado um acréscimo de 100 mortes por 100 mil habitantes, o um crescimento equivalente a 37%. O estudo indica também que não houve mudanças significativas em uma porção de países, como Bulgária, Nova Zelândia, Eslováquia, Austrália, Polônia, Dinamarca e Finlândia.

Já uma análise do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC) publicada no último dia 23 estima quase 300 mil mortes excessivas entre os períodos de 26 de janeiro e 3 de outubro no país. A pesquisa aponta que um total de 198 mil óbitos, ou 66% dos excessos de mortes, podem ser atribuídos à covid-19. Outro estudo, este divulgado na revista científica de medicina JAMA, estima o excesso de 225 mil mortes nos Estados Unidos -- 150 mil foram associados ao novo coronavírus.

No Brasil, um estudo da Vital Strategies indica que, entre 16 de março até 6 de junho, ocorreram 22% mais mortes do que o esperado para o período, o que corresponde a 62.490 óbitos. A pesquisa utiliza dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, que é a fonte oficial para os estudos epidemiológicos sobre mortalidade no país, e do Portal da Transparência do Registro Civil. As informações sobre o excesso de mortes desde o início do ano estão disponíveis em um painel do Conselho Nacional de Secretarias de Saúde (Conass)

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Estudo Vital Strategies

"A partir da semana epidemiológica 12 de 2020 [15/03 a 21/03], observou-se no país um excesso de óbitos sustentado em relação ao esperado, acentuando-se drasticamente a partir da SE 17 [19/04 a 25/04] e atingindo o pico na SE 19 [03/05 a 09/05] com 32% (9.057) de mortes a mais do que esperado para a respectiva semana do ano corrente", diz o estudo.

O documento pontua que o cálculo usa dados preliminares e deve ser refeita após a disponibilização de dados consolidados do SIM para o ano de 2020. Como mostrou o Estadão Verifica, os dados do Portal da Transparência do Registro Civil estão sujeitos a atualizações constantes, em meio a exceções no prazo legal para informe do óbito durante a pandemia do novo coronavírus.

Tedros Adhanom Ghebreyesus. Foto: EFE/EPA/Salvatore Di Nolfi

OMS não alterou definição de pandemia

Fuellmich ainda acusa a OMS de ter alterado a definição de pandemia antes do surto de H1N1, em 2009. O advogado insinua que a entidade mudou a concepção de pandemia de "uma doença que se espalha globalmente e causa muitas infecções e mortes" para "uma doença que apenas se espalha globalmente". Ele diz que a suposta mudança teria permitido à organização classificar a crise do novo coronavírus como uma pandemia para atender a interesses da indústria farmacêutica. 

Uma verificação da AFP aponta, no entanto, que a própria OMS negou ter alterado a definição de pandemia "pela simples razão de nunca ter definido formalmente uma pandemia de influenza". Segundo a reportagem, porta-vozes disseram que o órgão ainda não possui uma definição oficial para o termo e que a organização se baseia em um documento de 2017 com diretrizes para países enfrentarem pandemias.

O guia é uma atualização de outros documentos publicados em 1999, 2005 e 2009. Os relatórios descrevem as fases de uma pandemia, e não apresentam uma definição específica do termo. Mesmo considerando os conceitos de período pandêmico, a acusação de Fuellmich e seu grupo ainda é infundada. 

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Guia 2005

Guia 2009

No documento de 2005 a OMS classifica como período pandêmico um "aumento e transmissão sustentada na população em geral". A entidade ainda explica em observações que a diferença para estágios anteriores depende de uma série de fatores que podem incluir taxa de transmissão, localização geográfica e propagação, gravidade da doença; presença de genes de estirpes humanas, se derivadas de estirpe animal; e outras informações do genoma viral. 

No relatório de 2009, a definição de fase pandêmica é caracterizada "por surtos a nível comunitário em pelo menos um país de regiões diferentes", para além dos critérios da fase anterior, que considera a disseminação de humano para humano em dois ou mais países de uma mesma região. Novamente, não há o destaque a "muitas infecções e mortes" como sugere enganosamente Fuellmich. Em seu site, a OMS destacou que a revisão das fases da pandemia no documento de 2009 tiveram como objetivo transformar as diretrizes mais precisas e simples de entender. 

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