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Dados do Portal da Transparência sobre contratos são tirados de contexto para exaltar governo Bolsonaro

Postagem usa dados de painel que soma os valores assinados em cada ano; levantamento tem limitações e não significa que objetos contratados foram pagos

Foto do author Natália Santos
Por Victor Pinheiro e Natália Santos
Atualização:

Uma imagem que compara gastos anuais do governo federal com supostas "contratações de serviços e fornecimentos na administração pública" é compartilhada nas redes sociais para disseminar a versão de que a gestão de Jair Bolsonaro gasta menos que as dos presidentes anteriores. O conteúdo utiliza dados do Portal da Transparência. Sem contexto apropriado, porém, as informações do material podem induzir a interpretações erradas. 

A figura destaca que os valores atribuídos a 2019 e 2020 são inferiores aos montantes registrados nos anos anteriores. Os dados, extraídos da seção evolução histórica do Painel de Contrato da plataforma, mostram uma tendência de queda de R$ 247 bilhões, em 2013, para R$ 35 bilhões no ano passado. 

 Foto: Estadão

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O problema é que as informações não representam os valores gastos pelo governo brasileiro em cada ano, como diz a postagem. O gráfico mostra, na verdade, a soma total dos valores de contratos assinados por ano. A assinatura de um acordo não implica necessariamente pagamento. 

Segundo a Controladoria Geral da União (CGU), que administra a plataforma, as quantias ainda podem sofrer ajustes pontuais ao longo do tempo, porque eventuais aditivos e correções nos valores contratuais são contabilizados no ano em que o acordo foi assinado. Os números atuais, por exemplo, já diferem dos apresentados na imagem. O valor de 2020 saltou de R$ 23 bilhões para R$ 35 bilhões. 

Dados tabelados da série histórica de contratações do Portal da Transparência. Foto: Reprodução/Portal da Transparência

A CGU, entretanto, não deixa claro que há limitações metodológicas da série histórica no Portal da Transparência. Uma análise do Estadão Verifica também encontrou a ocorrência de um erro de digitação que inflou em mais de R$ 77 bilhões a quantia atribuída ao ano de 2017. 

Em nota ao Estadão Verifica, a instituição governamental esclareceu que os contratos são referentes ao Poder Executivo federal e também não diferenciam acordos para custeio ou investimentos. Ou seja, entram na conta contratos para manter serviços e programas já existentes, assim como para investimentos em novos equipamentos, obras, produtos e serviços.

Sobre os dados de 2021, a CGU afirmou que o Ministério da Economia necessitou migrar seu sistema de empenhos de compras públicas. "Os dados desse novo sistema não estão na origem utilizada pelo Portal da Transparência e, nesse sentido, os contratos de 2021 estão atualmente incompletos no Portal. Estamos em contato com o Ministério da Economia para alternativas de recebimento dos dados", justificou o órgão.

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Aditivos interferem na conta do ano de assinatura do contrato

Uma das principais limitações dos dados do Portal da Transparência é que o levantamento contabiliza em cada ano o valor total dos contratos assinados, mesmo que extensões e alterações contratuais tenham sido firmadas em anos posteriores. Sendo assim, os dados não permitem concluir quem gastou mais ano a ano com pagamentos de gastos referentes a contratos. Esse contexto é ignorado na imagem que se espalha pelas redes sociais. 

Em 2017, por exemplo, um dos acordos mais caros do ano foi firmado entre o Ministério da Educação e os Correios, para o serviço de transporte e entrega domiciliária de objetos relativos ao Programa Nacional do Livro, que distribui materiais didáticos a escolas públicas e instituições infantis. 

O contrato inicial, com prazo de um ano, previa o pagamento de R$ 1,65 bilhão aos Correios. O negócio foi renovado em 2018, 2019 e 2020, e atualmente o valor final do acordo está em R$ 3,3 bilhões. Embora mais da metade da quantia tenha sido acertada nos anos posteriores, o montante total é contabilizado em 2017, ano em que o primeiro documento foi assinado. 

Aditivos do contrato entre MEC e Correios listados no Portal da Transparência. Foto: Reprodução/Portal da Transparência

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Além disso, há erros de entrada de dados na plataforma. Um contrato do Ministério da Saúde com a Fiotec, entidade de caráter privado ligada à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), estabeleceu um acordo inicial no valor de R$ 604 mil, com vigência de apenas sete meses, para "apoio logístico e gestão financeira da segunda fase do projeto Brasil Saúde Amanhã''. 

Contrato

O valor final informado na plataforma é de R$ 78 bilhões, mais da metade da soma de todos os contratos assinados no ano de 2017. Em nota ao Estadão Verifica, a Fiocruz informou que houve um equívoco no lançamento do valor desse contrato no Portal da Transparência. 

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Captura de tela do registro do contrato no Portal da Transparência. O valor inicial de R$ 604 mil passa para R$ 78 bilhões. Registro em 15 de julho de 2021. Foto: Reprodução/Portal da Transparência

"A execução do contrato citado nem sequer chegou ao valor inicial previsto", diz o comunicado. "O aditivo, no valor de R$ 362.450,00, foi para a supressão desse valor, uma vez que houve redução de recursos destinados a este projeto. Já foi registrado um chamado junto ao Portal da Transparência para urgente retificação da página e da informação."

Erro nos valores do contrato inflaram participação da Fiocruz nos resultados do ano de 2017 informados no Portal da Transparência. Foto: Reprodução/Portal da Transparência

Para Jonas Coelho, cientista de dados da Transparência Brasil, as limitações do painel podem confundir usuários e levar a interpretações equivocadas sobre os dados. Segundo ele, sem deixar clara a forma como os dados são agregados na visualização, a série histórica de contratos assinados fornece "argumentos incompletos". 

Coelho ressalta que painéis automáticos como o analisado nesta reportagem podem ser úteis para diversas análises, mas é preciso muito cuidado ao interpretá-los. "Quando a gente trabalha com dados de prestação de contas, é mais de uma semana só limpando e contextualizando dados. Painéis automáticos muitas vezes pulam todo esse processo." 

Pagamento e compras pontuais

Os dados da série histórica de contratos do Portal da Transparência não fazem distinção entre despesas de custeio -- para manter os serviços já existentes -- e investimentos. Dentre as operações agregadas aos valores publicados na plataforma constam compras pontuais de equipamentos, como uma frota de veículos blindados para o exército em 2016, e um acordo de afretamento de uma plataforma marítima pela Petrobrás

Trata-se de investimentos que não são repetidos em outros anos. Além disso, qualquer ajuste no valor dos acordos, mesmo que definido posteriormente, ainda entraria na conta de 2016. A evolução histórica aponta somente os valores totais contratados em cada ano, mas não informa o quanto de fato foi empenhado ou pago no período. 

Coelho ressalta que os valores apresentados no gráfico que embasa a postagem não mostram necessariamente gastos do Executivo. "Se um contrato foi assinado em um ano, não necessariamente ele será pago no mesmo ano ou nos posteriores", destacou. Ele cita como exemplo o contrato da compra da vacina Covaxin, que é investigado pela CPI da Covid no Senado. O governo chegou a emitir uma nota de empenho, mas o pagamento ainda não foi efetuado. 

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O termo empenho compreende a fase da execução orçamentária em que um valor é reservado dentro do orçamento para cobrir um compromisso futuro. 

Dados do Portal da Transparência indicam, por exemplo, que, no caso da contratação dos veículos blindados do Exército, ao menos sete notas de empenho de até R$ 37 milhões foram emitidas em dezembro de 2020, apesar de o contrato ter sido assinado em 2016. Ainda assim, a emissão do documento não significa exatamente que os valores foram pagos. 

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