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Boato investe em tese enganosa para atribuir preço atual da carne ao PT

Inflação do produto está relacionada com problemas climáticos, câmbio desvalorizado e demanda externa; suposto ‘monopólio’ da JBS não se sustenta em números do mercado e nas lojas da rede Assaí

Foto do author Samuel Lima
Por Samuel Lima
Atualização:

Um vídeo enganoso no Facebook alcançou mais de 840 mil visualizações ao investir em uma tese infundada sobre o preço atual da carne no Brasil. Nele, um homem aparece em frente a um supermercado Assaí, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro (RJ), dizendo que a culpa de ter gastado quase R$ 100 no quilo de um corte bovino seria dos governos do PT

A justificativa dada é a de que os ex-presidentes Lula (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016) teriam liberado "R$ 31 bilhões" em empréstimos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para a JBS, dona da marca Friboi, com "juros de 1% ao ano". Esse dinheiro acabou servindo, segundo ele, para a empresa criar um "monopólio da carne", comprando todos os concorrentes e passando a ditar preços no mercado.

 Foto: Estadão

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A história, porém, não condiz com os dados sobre o mercado de carnes no Brasil. A JBS não detém um "monopólio" na venda de carne bovina, ainda que o setor esteja concentrado em poucas empresas concorrentes. Além disso, o supermercado carioca comercializa, sim, outras marcas além da Friboi. 

Dados do BNDES mostram ainda que, entre as operações citadas, apenas a compra da Bertin envolve comprovadamente aportes do banco -- mas por meio de compra de ativos financeiros da JBS, e não de empréstimos, muito menos com juros de 1%. Por outro lado, a política de apoio estatal à expansão da JBS virou alvo de investigações da Polícia Federal (PF), do Tribunal de Contas da União (TCU) e do Ministério Público (MPF). 

Em 2017, o grupo que controla a empresa, a J&F, fechou um acordo de leniência (espécie de delação premiada das empresas) e relatou um esquema de pagamento de propina a políticos e servidores públicos em troca de apoio financeiro do BNDES para internacionalização da JBS. O acordo previu o pagamento de R$ 10,3 bilhões em multas ao longo de 25 anos.

O motivo da alta nos preços

As carnes tiveram um crescimento acentuado de preços ao longo do ano. No momento mais crítico, em junho de 2021, a inflação acumulada em 12 meses das carnes em geral chegou a 38,17%. Os dados são do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), medido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

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A alta acumulada nos preços em 12 meses continua presente hoje, mas em ritmo um pouco menos acelerado. Em novembro, as carnes estavam custando 10,81% mais do que um ano antes. Esse fenômeno se estende a todos os cortes bovinos apurados no levantamento, como acém (9,74%), costela (8,8%) e alcatra (16,59%).

Em entrevista ao Estadão Verifica, o pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Matheus Peçanha explicou que a alta recente nos preços está relacionada principalmente com problemas climáticos, desvalorização da moeda e demanda externa aquecida. 

"Foram três fatores juntos: demanda chinesa e câmbio alto, que incentivam a exportação, e o problema climático, que dificulta a produção", explica. Com a redução da oferta no mercado, o consumidor tende a pagar mais pelo produto.

Primeiro, a seca que atingiu o Brasil ao longo do ano trouxe fortes impactos ao agronegócio, pois reduziu a qualidade das pastagens e obrigou os pecuaristas a destinarem mais ração para o gado. Só que a ração também estava mais cara, com as quebras nas safras de milho e soja. "Você tem pastagens ruins, ração mais cara, e isso impacta diretamente nos custos de produção da proteína, não só da carne bovina, mas também suína e aves", aponta. 

A desvalorização da moeda brasileira agravou o cenário de inflação. Quando o dólar está em patamares mais elevados, as exportações passam a ser mais atrativas para o setor, que prefere receber em dólar pelo produto em vez de abastecer o mercado interno. "O Brasil exporta muito alimento e muita carne e, com esse câmbio mais alto, a tendência é aumentar ainda mais", lembra. Além disso, houve crescimento na demanda da China, o que ajuda a impulsionar as cotações internacionais.

Consumidor observa preços em açougue no Mercado da Lapa, zona oeste de São Paulo. Alimentos têm pesado mais no orçamento doméstico. Foto: Taba Benedicto/Estadão

De acordo com uma reportagem da BBC News Brasil, com o aumento nos preços, o consumo da carne bovina vem caindo há três anos consecutivos no Brasil. Para 2021, a estimativa era de queda de 2%, a 5,24 milhões de toneladas, o menor valor em 12 anos.

Apesar de concentrar o mercado, JBS não tem 'monopólio' nas vendas

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O autor do vídeo, ignorando os fatores citados, atribui a elevação do preço das carnes a um suposto "monopólio" da JBS na venda de carnes, criado em parceria com os governos do PT. Assim, ele sugere que a empresa estaria colocando o preço que bem entende nos produtos, porque não existiria concorrência. A afirmação é falsa.

No Brasil, um dos principais órgãos que defendem a livre concorrência é o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. Entre as suas atribuições está a de decidir se fusões, aquisições de controle, incorporações e outros atos de concentração econômica entre grandes empresas podem colocar em risco esse conceito.

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O Estadão Verifica entrou em contato com o Cade e o questionou sobre a acusação de monopólio. "Não há monopólio no setor de carne bovina in natura", respondeu a autarquia. "Para considerar um mercado como monopolista, deve-se observar uma única empresa dominando o mercado inteiro (com market share de 100%), e não é isso que se verifica nesse setor."

O Cade afirmou que possui dados de participação de mercado das empresas a partir da análise dos processos e encaminhou para a reportagem uma tabela com dados públicos de 2013, quando a JBS adquiriu os frigoríficos Tirolesa. Naquele momento, a estimativa de participação da JBS, junto com a Bertin, era de 20% a 30%. Marfrig, Minerva, Perdigão e Sadia, entre outros, que permanecem no mercado até hoje e não fazem parte da JBS, apareciam com até 10% do mercado.

Outro trabalho mais recente, do pesquisador da Universidade de Brasília (UnB) Gabriel Medina, que levantou dados apenas para a carne bovina in natura, estima uma participação mais elevada da JBS, mas ainda insuficiente para caracterizar monopólio. O marketshare estaria em 51% no mercado em 2019, contra 19,5% da Marfrig e 16,2% da Minerva, as duas principais concorrentes.

Para além dos dados nacionais, alguns grupos de pecuaristas reclamam do domínio da JBS em algumas regiões do País, como o Mato Grosso, o que reduz as alternativas de venda da produção animal. Ainda assim, não há como dizer que a oferta de outras marcas de carne ao consumidor esteja inviabilizada por esse motivo em qualquer localidade.

De acordo com uma reportagem do site Infomoney, a JBS faturou R$ 31,7 bilhões no Brasil em 2020; a BRF, dona da Sadia e da Perdigão, R$ 22,2 bilhões; a Marfrig, R$ 18,6 bilhões (incluindo Brasil e América Latina); e a Minerva, R$ 11,5 bilhões.

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Assaí não vende só Friboi

O relato enganoso do vídeo começa com um homem em frente a uma loja da Assaí, na Barra da Tijuca (RJ), dizendo que a rede de supermercados vende apenas Friboi. Ele segura uma embalagem de uma das linhas mais caras da marca, a "1953", e reclama do valor do quilo, de R$ 98,90.

A informação não é verdadeira. Basta uma rápida pesquisa na internet para encontrar encartes antigos da Assaí em sites agregadores de ofertas contendo carnes de outros frigoríficos, como o Minerva. O site oficial da rede atacadista ainda menciona concorrentes do setor, como Sadia e Perdigão, da BRF.

Procurada pelo Estadão Verifica, a rede afirmou que a empresa comercializa mais de 8 mil itens por loja e não realiza acordos de exclusividade com marcas na venda de nenhuma categoria. "Na seção de carnes, por exemplo, são mais de 20 fornecedores homologados para fornecer às lojas do Assaí, o que inclui os principais nomes da indústria brasileira". O estabelecimento da Barra da Tijuca foi inaugurado em dezembro.

Apoio do BNDES para a JBS gerou suspeitas

O autor do vídeo enumera uma série de aquisições da holding J&F, dona da JBS, que teriam sido feitas com dinheiro público. Fariam parte da lista a Bertin, Seara, Vigor e Frangosul, assim como negócios sem nenhuma relação com a indústria de carnes, como a Alpargatas, dona da Havaianas.

O BNDES mantém uma plataforma aberta para consulta dos contratos da instituição. Ao pesquisar especificamente sobre a JBS, o Estadão Verifica chegou a 12 contratos, que envolvem tanto financiamentos diretos e indiretos quanto aplicações do BNDES Participações (BNDESPar).

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Apenas um dos contratos foi declaradamente um empréstimo tomado para viabilizar uma compra de outra empresa do segmento. Em agosto de 2005, o banco liberou R$ 187,5 milhões para financiar a aquisição, pela JBS, do frigorífico argentino Swift Armour. O juro do contrato era de 3% ao ano, com prazo de 48 meses para pagamento, após 12 meses de carência.

No mesmo ano, o BNDES destinou R$ 100 milhões para a JBS a título de "capital de giro", algo que se repetiu em 2010, com a quantia de R$ 200 milhões. O primeiro caso teve 12 meses de prazo para pagamento, após carência de 12 meses, com juros de 5,5% ao ano; o segundo, 24 meses de prazo, mais 12 de carência, com juros de 4,8% ao ano.

Também aparecem entre os contratos algumas operações de exportação pré-embarque. Trata-se de um financiamento voltado para a produção de mercadorias antes do envio ao exterior. Foram quatro operações do tipo, entre 2002 e 2005, que somaram R$ 139,2 milhões, sempre com a planta da JBS em Andradina (SP).

Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) cedeu empréstimos e investiu em ações da JBS para apoiar expansão. Foto: Wilton Júnior/Estadão

Além desses financiamentos, o BNDES investiu em ativos da JBS, por meio do BNDESPar, chegando a possuir quase um quarto do capital aberto da empresa de proteína animal. Nessa modalidade, o banco acaba se tornando sócio daquele negócio e pode obter prejuízo ou lucro com a venda das ações no futuro, além de captar eventuais dividendos pagos pela companhia aos acionistas. Mas os valores envolvidos e o objetivo das operações levantaram suspeitas de favorecimento na Justiça.

Em 2007, o BNDES comprou R$ 1,13 bilhão em ações, quando a JBS levantava fundos para a compra da norte-americana Swift & Co. Em 2008, adquiriu mais R$ 996 milhões, quando a empresa se movimentava para comprar a National Beef e a Smithfield, também dos Estados Unidos. Entre 2009 e 2010, o BNDES fez o maior investimento, na soma de R$ 3,47 bilhões em debêntures, quando a companhia reforçava o caixa para bancar a aquisição da brasileira Bertin e da norte-americana Pilgrim's Pride.

Quando se considera todas as empresas do grupo -- ou seja, a holding J&F, e não apenas a JBS -- o BNDES afirma que desembolsou o equivalente a R$ 17,6 bilhões. Deste montante, R$ 9,5 bilhões foram em crédito (sendo R$ 4,6 bilhões de forma direta e R$ 4,9 bilhões por intermédio de outros bancos, que assumem o risco do contrato) e R$ 8,1 bilhões através da compra de ações da JBS e da Bertin.

Portanto, o autor do vídeo checado espalha uma falsidade quando alega que o BNDES cedeu empréstimos com juros de "1% ao ano" para a compra de empresas como Bertin, Seara, Frangosul e Vigor. Ele também eleva o recurso gasto pelo BNDES para "R$ 31 bilhões", ainda que se possa chegar a isso ao corrigir os valores pela inflação, e desconsidera que uma parte do montante se refere a investimentos.

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O BNDES divulgou, em 2020, que um relatório de uma auditoria contratada pelo banco por R$ 48 milhões não encontrou irregularidades nas operações com JBS, Eldorado Celulose e Bertin, entre 2005 e 2018. Porém, órgãos como o TCU e o MPF conduzem investigações para apurar se houve prejuízo aos cofres públicos. 

O Ministério Público Federal já ofereceu denúncias sobre fraudes em contratos com o BNDES e pediu ressarcimento de R$ 21 bilhões ao erário. Para os procuradores, o esquema, "alimentado por propinas, garantiu financiamentos supervalorizados, a aprovação de investimentos sem a devida análise, o não acompanhamento das operações financeiras e empréstimos sem garantias".

O que dizem JBS e BNDES

Procurada, tanto a assessoria de comunicação da JBS quanto a da J&F não quiseram comentar o assunto. 

O BNDES enviou ao Estadão Verifica duas páginas na internet para consulta e ressaltou que não administra o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), desmentindo outra alegação falsa contida na peça. "A administração do FGTS está sob responsabilidade da Caixa Econômica Federal. Para financiamento de longo prazo e investimentos em todos os segmentos da economia brasileira, o BNDES dispõe de diversas fontes de recursos. Em especial, o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e o Tesouro Nacional."

Sobre os contratos com a JBS, a instituição menciona, em seu site, a auditoria externa que não encontrou irregularidades e afirma que, "até o momento, não houve nenhuma condenação contra funcionários do Banco".


Este boato foi checado por aparecer entre os principais conteúdos suspeitos que circulam no Facebook. O Estadão Verifica tem acesso a uma lista de postagens potencialmente falsas e a dados sobre sua viralização em razão de uma parceria com a rede social. Quando nossas verificações constatam que uma informação é enganosa, o Facebook reduz o alcance de sua circulação. Usuários da rede social e administradores de páginas recebem notificações se tiverem publicado ou compartilhado postagens marcadas como falsas. Um aviso também é enviado a quem quiser postar um conteúdo que tiver sido sinalizado como inverídico anteriormente.

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Um pré-requisito para participar da parceria com o Facebook  é obter certificação da International Fact Checking Network (IFCN), o que, no caso do Estadão Verifica, ocorreu em janeiro de 2019. A associação internacional de verificadores de fatos exige das entidades certificadas que assinem um código de princípios e assumam compromissos em cinco áreas:  apartidarismo e imparcialidade; transparência das fontes; transparência do financiamento e organização; transparência da metodologia; e política de correções aberta e honesta. O comprometimento com essas práticas promove mais equilíbrio e precisão no trabalho.

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