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A análise atenta dos principais depoimentos e documentos obtidos pela CPI da Covid na visão do especialista em saúde pública Mário Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da USP

Esqueceram do SUS no relatório final da CPI

Proceder a leitura do relatório final da CPI significa examinar um catálogo de intenções que está limitado ao tempo e à qualidade das provas produzidas, e que reflete as decisões tomadas pelo grupo majoritário de senadores que deu as cartas durante a investigação.

Por Mário Scheffer
Atualização:

Quando o senador Renan Calheiros anunciou ter se rendido a "argumentos técnicos indiscutíveis", após encontro na residência do senador Tasso Jereissati, na noite anterior à leitura do relatório, o consenso obtido requer outra compreensão.

Relator da CPI da Covid, Renan Calheiros, leu o relatório final nesta quarta-feira, 20  

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A exemplo das alterações combinadas, que produziram atenuantes para Jair Bolsonaro e Silas Malafaia, o que aparece na luz, o que será chamado de vitória de uns e derrota de outros, tem relação com o "quem é quem", com ênfases particulares e interesses em disputa.

Num famoso discurso nas Nações Unidas, Nikita Khrushchev, que liderou a União Soviética durante parte da Guerra Fria, afirmou assim: "o que é nosso é nosso, o que é teu é negociável". Esconder intenções, para Richelieu, era o verdadeiro conhecimento dos reis, e, para Maquiavel, o segredo do sucesso na política.

Talvez nunca saibamos sobre reais propósitos de parte do que foi incluído, do que foi deixado de fora e do que será alterado até a votação na próxima semana.

Das sessões transmitidas da CPI saem poucas pistas, pois há indiciados que não foram ouvidos, temas relatados que não receberam atenção pública, e até juízos de valor invertidos: o relatório às vezes trata como colaboradores autoridades e instituições que, sob olhar mais atento, foram claramente negligentes.

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A CPI da Pandemia, ou da Covid, como ficou conhecida, carrega a doença ou o fenômeno de saúde pública no nome. Foi originalmente proposta com o objetivo de "apurar as ações e omissões do Governo Federal", mas uma avaliação honesta sobre as falhas do sistema de saúde durante a crise sanitária seria também essencial.

A eloquência do relatório quanto à responsabilização de Bolsonaro e demais agentes não esconde a debilidade de partes do texto. Passaram à margem ou desceram ao rodapé o disfuncionamento do SUS, a omissão do setor privado e a incúria de instituições de saúde que têm quinhão relevante na produção de sofrimento, infecções e mortes.

Na galeria da Saúde, o relatório é contundente ao apontar a culpa de Pazuello, Queiroga, parte do segundo escalão do ministério e cúmplices, incluindo gente da Prevent Senior e do Conselho Federal de Medicina.

Mas dois ex-ministros da Saúde de Bolsonaro, além dos presidentes da Anvisa e da ANS, todos depoentes da CPI e omissos em muitas circunstâncias, são pintados no relatório quase que como heróis da saúde pública.

Separar ações em capítulos e eleger para cada uma delas os vilões, termina por borrar a visão. Fatos ficam sem encadeamento e não se distingue o político, do biológico e do social.

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Um cidadão que trabalhava como entregador de comida, e não recebeu a tempo o auxílio emergencial, teve covid-19.

Outro, adulto jovem e sem comorbidades, morador de habitação precária, não teve acesso ao teste e também se infectou e adoeceu.

Ambos usaram o "kit covid", desenvolveram a forma grave da doença, permaneceram em unidades pré-hospitalares por falta de vaga de internação, e os desfechos foram fatais.

Nas famílias de ambos, outras pessoas foram infectadas e só receberam a primeira dose da vacina no segundo semestre de 2021.

Quem se omitiu e quem errou?

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Desde o início dos primeiros casos no Brasil ocorreram falhas no controle da entrada de passageiros em portos e aeroportos, o lockdown foi descartado, a retaguarda de testagem e atendimento hospitalar excepcional ficaram mais na retórica, mãos homicidas assinaram documentos oficiais negando a possibilidade do uso de leitos privados de terapia intensiva para pacientes do SUS.

O SUS sai da pandemia altivo, um oásis de solidariedade em meio às campanhas de entidades patronais que conclamavam o retorno da economia em pleno pico de infecções e óbitos. O Brasil não podia parar, mas estava autorizado a matar.

Mas é preciso reconhecer que um sistema de saúde precisa mais do que orgulho para desempenhar sua missão de melhorar as condições de saúde da população.

O SUS não teve potência para erguer barreiras à transmissão e para cuidar com rapidez e qualidade dos doentes. Caso ocorra outra emergência sanitária, o SUS segue altamente vulnerável.

No início da CPI, duas torcidas se destacaram: a do " viva o SUS", pelo fortalecimento do sistema público e a do "fora, Bolsonaro", pelo impeachment.

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As imputações de crimes a integrantes do governo federal possivelmente terão desdobramentos políticos e judiciais.

Já o SUS, nas apurações incompletas e na penúria dos projetos legislativos sugeridos, ficou esquecido no relatório final.

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