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A análise atenta dos principais depoimentos e documentos obtidos pela CPI da Covid na visão do especialista em saúde pública Mário Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da USP

CPI da Covid reestreia com entidade religiosa que se comportava como os vendilhões do templo

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Por Mário Scheffer
Atualização:
Reverendo Amilton Gomes de Paula chora durante depoimento à CPI da Covid - Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

Após duas semanas de recesso, a CPI da Covid retomou as sessões demarcando o campo de investigação sobre prováveis desvios nas negociações de vacinas pelo Ministério da Saúde.

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Antes do depoimento da vez, a CPI deu sinais de demasiada ambição, ao aprovar dezenas de requerimentos, entre convocações, quebras de sigilos e pedidos de informação.

Os novos depoimentos de testemunhas, votados já no primeiro dia do retorno, mesmo se não for requerido mais nenhum, já são suficientes para preencher toda a agenda pública da comissão até novembro.

Embora disponha de material documental cada vez mais abundante, o inquérito que segue a catinga da corrupção está ainda incompleto, repleto de interrogações e dissonâncias.

Por isso, era grande a expectativa diante da oitiva do reverendo Amilton Gomes de Paula, um dos exóticos cambistas da compra e venda de vacinas contra a covid.

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Jason Moser, professor da Universidade de Michigan (EUA), estudioso das emoções e da ansiedade, publicou com colegas, na revista Nature, a evidência de que, repetir o próprio nome, pensar em si mesmo como se tivesse se dirigindo a outro, daria a alguém uma distância psicológica necessária para facilitar o autocontrole.

O reverendo Amilton, em sua exposição inicial na CPI, falou de si na terceira pessoa, o que não lhe foi útil, durante arguições dos senadores, para escapar do descontrole cognitivo, de concentração e memória.

Não convenceram as explicações sobre seu papel de intermediário na "venda humanitária" de vacinas, o que renderia, caso fechasse negócios, doações monetárias para sua ONG religiosa, a Senah.

Tampouco comoveu o lamento da vítima do golpe da vacina: "fomos usados de maneira ardilosa para fins espúrios". O levantamento da bola rendeu mais adiante o arremesso de um dos senadores que fazem a defesa ardente no jogo do governo na comissão.

Considerando a lama na qual está atolada, a empresa Davati, essa importadora norte-americana de fundo de quintal, funcionou, ao fim, como um cavalo de Troia, levado por Amilton às entranhas do Ministério da Saúde. O interior da tenebrosa transação, acolhida prontamente por gente do governo, ocultava surpresas que desaguariam numa CPI.

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Nesta segunda fase, as acareações indiretas dos senadores mudaram de patamar. Para contrapor depoentes, vídeos foram substituídos por conteúdos de mensagens obtidas pela quebra de sigilo ou por pedido de informações.

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Em correios eletrônicos trocados, espantosas foram a agilidade e a desenvoltura com que o reverendo mobilizou as atenções da pasta da Saúde.

O episódio exprime também a proximidade e a influência da religião no governo Bolsonaro. Portas de ministérios estão sempre abertas para isenções de tributos e perdão de dívidas de Igrejas, abertura de templos durante a pandemia, interesses de empresas de comunicação ligadas a líderes evangélicos, pautas morais contra o aborto, igualdade de gênero e diversidade sexual.

A linha de separação entre religião e política no Brasil nunca foi exatamente demarcada. O acionamento de recursos federais da saúde e da assistência social, por organizações sociais de cunho religioso, é expediente de longa data. A diferença é que, no atual governo, além da relação orientada para serviços ditos filantrópicos, deu-se a admissibilidade para operações fisiológicas e tentadoras do mundo secular, como a venda de vacinas superfaturadas, encaminhada pelo reverendo Amilton.

Há uma década, outra comissão de inquérito do Senado, a "CPI das ONGs", pretendia investigar a relação do governo federal e o repasse de recursos a organizações não governamentais. Com escopo amplo e impreciso, uma das poucas contribuições daquela CPI foi enfatizar a necessidade de estrita conexão entre as atividades desenvolvidas por entidades da sociedade civil e o escopo dos projetos e serviços que uma ONG busca manter com a Administração Pública.

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Perdida na amnésia da produção parlamentar inútil, a recomendação pode agora ser resgatada pela CPI da Covid, depois da revelação de uma entidade religiosa que se comportava como os vendilhões do templo.

"Eu tenho culpa sim. Eu hoje, de madrugada, antes de vir para cá, dobrei meus joelhos, orei, e peço desculpas ao Brasil", declamou o reverendo na CPI.

A misericórdia, ou seu correspondente, o perdão, para serem aspirados, após 557 mil mortes por covid no País, requerem muito mais que arrependimento. Exigem justiça e reparação.

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