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Transformando a gestão pública brasileira e fortalecendo a democracia

A crise dos valores na vida em sociedade

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Por Eduardo Chaves é servidor público do Governo do Distrito Federal , doutorando em Ciência Política pela Universidade de Brasília. Foi aluno da primeira turma do Master em Liderança e Gestão Pública do
Atualização:

João Pedro, no Brasil, e George Floyd, nos Estados Unidos. Duas pessoas negras mortas pelo braço do Estado, assim como tantas outras unicamente por serem negras. Isso me lembra da primeira aula do Master em Liderança e Gestão Pública, ministrada pelo mestre Luiz Felipe d'Ávila. Não exatamente com essas palavras (essa aula foi em julho de 2014), ele nos disse que trabalhar com gestão pública exige diversas habilidades e ferramentas, mas que o fazer cotidiano das políticas públicas perpassa, eminentemente, os valores que estão postos como projeto de sociedade e de democracia, ao passo que também é preciso ver o mundo para além das lentes "direita ou esquerda". Essas lentes são, grosso modo, apenas formas de compreensão sobre como o Estado deve conduzir a resolução dos problemas da sociedade, que não necessariamente são boas ou ruins a priori.

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De lá para cá, a polarização política ganhou novas formas de se manifestar, novos atores surgiram e a distribuição de poder foi alterada. Por sermos uma democracia nova, o surpreendente é compreensível, afinal, estamos aprendendo a duros golpes como ser uma democracia de fato. Nessa toada, alguns pontos merecem uma discussão mais atenta sobre valores fundamentais da vida em sociedade, aspectos que deveriam ser o alicerce da democracia, seja qual for a ideologia do espectro político que esteja no poder.

Em um momento da história em que tudo pode ser relativizado em nome da manutenção do poder - ou apenas para ''vencer'' uma discussão qualquer, presenciamos valores serem legitimados mesmo se apoiando em estruturas sociais antidemocráticas e anticivilizatórias. Nunca a verdade foi tão questionada a ponto de ser apenas uma ideia teórica sobre alguma situação, estando sempre passível de ser questionada, mesmo sem fundamento científico ou simplesmente por meio de um meme de internet.

Retomando o início deste texto, um exemplo desse cenário é o contínuo agravamento das consequências perversas do racismo estrutural. Estados Unidos e Brasil vivem crise sanitária - cada um a seu modo -, mas a morte de pessoas negras vítimas de violência do Estado parece ser uma endemia flagrante do fracasso dessas nações em se firmarem sobre valores democráticos.

Um dos aspectos mais preocupantes desse problema é o negacionismo por parte de uma grande parcela da população de ambos os países. Não mais se trata de divergências sobre qual a melhor forma de o Estado enfrentar o racismo, à esquerda ou à direita, mas sim da ressignificação do massacre da população negra como produto das relações desiguais de poder estabelecidas, ou de um mero acaso. Em outras palavras, há pessoas que defendem não haver racismo, negando inclusive a legitimidade do enfrentamento por parte daqueles que sofrem violência ou dos que são sensíveis ao tema, o que invariavelmente diz respeito ao tipo de humanidade que existe nas pessoas que negam - ou se omitem - a gravidade do problema.

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A forte reação ao assassinato de George Floyd tem sido emblemática sobre o que de fato é importante na vida em sociedade. Tudo isso é permeado por valores. Por política. As mortes tanto de Floyd quanto de João Pedro escancaram o tempo perdido tentando demover pessoas da ideia de que a Terra é plana, ou de uma suposta ameaça comunista no Brasil, ainda que tudo isso convirja de alguma forma. Pessoas estão morrendo em nome da defesa de certos valores, ou de aversão a outros, mas é forte a ocorrência de comentários, inclusive com muita veemência, sobre o absurdo que são os saques realizados durante as manifestações contra o racismo enraizado na sociedade norte-americana. E quando, aos olhos das pessoas, é mais grave uma vidraça quebrada e uma loja saqueada do que o brutal e covarde assassinato de uma pessoa unicamente por ela ser negra, não há política pública que consiga fazer frente a esse tipo de valor. Dentre as crises que vivemos atualmente, a de humanidade me parece ser a mais grave de todas.

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